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O Islã precisa de um papa

Por Adriana Carranca
Atualização:

O autodesignado Estado Islâmico (EI) voltou a aterrorizar o mundo com execuções públicas e barbáries afins, mas é ao próprio Islã e seus quase 2 bilhões de seguidores que ele oferece maior perigo. Grupos jihadistas do passado cometeram atrocidades em nome do Islã, mas há uma diferença retórica. Na era pré-EI, o fundamento da jihad estava na reação aos que eles viam como opressores do povo muçulmano. Dos atentados palestinos contra Israel à criação da Al-Qaeda, em reação à Guerra do Golfo, do 11 de Setembro aos ataques a alvos ocidentais para vingar mortos no Afeganistão e Iraque - Madrid e Londres, entre eles. A motivação do ataques a Paris não foram tropas francesas em território muçulmano, mas charges do profeta Maomé publicadas no Charlie Hebdo. O alvo deixa de ser o opressor e o objetivo não é retaliar, mas impor a doutrina. A diferença medular do EI não está apenas na bestialidade de seus atos midiáticos, mas no fato de que garimpam no Alcorão a justificativa da barbárie. O grupo renega qualquer outra interpretação do livro sagrado e assim cria um novo vernáculo da fé. Nada pode ser tão danoso a uma religião que congrega um quarto da população do mundo, tão diversa quanto o todo. O grupo é liderado por um PhD em estudos islâmicos que se autodeclara o califa - ou governante de todos os muçulmanos - e adotou o nome de Abu Bakr, sogro e sucessor de Maomé. Ninguém está fazendo mais para destruir a imagem do Islã do que ele. Na terça-feira, terroristas decapitaram Khaled Asaad, arqueólogo de 82 anos que se recusou a revelar o esconderijo de tesouros de Palmira. Os muçulmanos conviveram com sua herança romana desde que o Islã chegou à região, em meados do 1.º milênio. É um dos mais importantes sítios arqueológicos, atrás de Roma, Pompeia e, talvez, Petra (aliás, protegida por um governo muçulmano). Para o EI, são hereges. A destruição na Síria e Iraque já é considerada o maior ataque ao patrimônio cultural desde a 2.ª Guerra, disse à National Geographic Michael Danti. Para o arqueólogo, o alvo dos terroristas não é apenas o mundo infiel, mas a história moderna do Islã. A maioria dos sítios destruídos pelo EI é da era islâmica. De santuários na Líbia ao túmulo de Mohamed Bin Ali, descendente do imã Ali, primo do Profeta Maomé. O EI quer erradicar a memória do Islã para construir, em seu lugar, uma nova narrativa. Nem o secularismo na Europa, as hostilidades da América ou o crescimento da xenofobia no mundo ameaçam tanto a religião muçulmana. Reportagem do New York Times mostrou como o EI coloca na conta do Islã até a escravidão sexual de meninas e mulheres, no que o jornal chamou de teologia do estupro. Líderes das várias linhas do Islã têm condenado o EI, mas sua voz é fragmentada por divisões internas - entre fronteiras doutrinárias, geográficas e políticas. Clérigos se esforçam em combater sua retórica criminosa nos sermões, mas é como pregar aos convertidos. Até a Arábia Saudita salafista e o Irã xiita condenaram o grupo, mas suas frequentes execuções sumárias, por enforcamento e decapitação, não contribuem com a causa do Islã pacífico. Também no cristianismo, divisões internas, crimes e o fundamentalismo ameaçam mais a religião do que o secularismo ou o proselitismo - pastores bilionários que achacam fiéis e seguem espalhando preconceito e discriminação; corrupção no Vaticano e padres pedófilos. Muitos papas no passado acobertaram os crimes da Igreja Católica. O atual, Francisco, parece trilhar outro caminho. Sua chegada se deve, em grande parte, a uma tentativa de responder à crise da Igreja diante de tantos escândalos e pecados, que ameaçava sua existência. É nesse sentido que os muçulmanos talvez precisem de um papa. Não se trata de desculpar-se pelo EI, mas de contradizer sua falsa narrativa do Islã. Falta-lhes uma voz com poder de influenciar tanto as massas quanto os dignitários do poder, que represente a pluralidade dos muçulmanos e seja capaz de defender a fé que a maioria considera pacífica. E que seja um moderado. Inshallah.

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