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O longo inverno do 11/9

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Por Gilles Lapouge
Atualização:

É a volta às aulas de 2016. Os pequenos se dão as mãos. Choram um pouquinho. Sua carreira escolar vai começar. Uma professora boazinha os recebe. Ela explica o que devem fazer se pessoas usando máscaras e armadas de fuzis entrarem gritando. Também fala de outras pessoas que estão pelos corredores ao lado dos professores, com roupas e chapéus engraçados: são policiais militares. É estranho que se entre na escola como se entra num campo de batalha. O 11 de Setembro de 2001 teve outras consequências, claro. Mas o fato de que hoje, 15 anos depois, crianças de 4 anos sejam submetidas a formalidades policiais, quase de guerra, comprova que os aviões daquele dia sobre Nova York levaram a humanidade a paragens desconhecidas. Desde aquele dia, esses novos limites ficaram visíveis, mas ainda semiocultos e misteriosos. Suspeitava-se apenas que uma guerra não declarada havia começado, uma guerra sem paralelos com qualquer outra conhecida. Até aquele dia, quando queríamos matar inimigos nós os avisávamos. Mesmo Hitler tivera a delicadeza de anunciar suas incursões. A guerra antiga era disciplinada e sofisticada. Conhecia os princípios do direito, ainda que só para violá-los. Sabia-se de onde vinham os inimigos: saíam de algum país, haviam crescido atrás de uma fronteira. Seus chefes eram conhecidos, podia-se conversar com eles. Embaixadores circulavam entre nações inimigas. Mas naquele dia de 2001 ninguém sabia quem eram os agressores, de onde vinham, o que queriam. E mais: nas guerras tradicionais, quando se queria massacrar o inimigo com bombas, os pilotos eram inteligentes o bastante para não explodirem com elas. Não foi assim em 2001. Os aviões pareciam pilotados por ninguém, não vinham de um país, não tinham nacionalidade. A desgraça vinha de um lugar indeterminado, do qual todas as regras que comandavam as relações internacionais haviam sido varridas.  Por trás do massacre do 11 de Setembro desenhava-se obscuramente uma geografia e uma história. Também uma filosofia, que não se parecia com nenhuma ensinada nos livros escolares. Carlos Magno, Frederico, o Grande, Napoleão, frente a tal batalha, teriam perdido a voz. A humanidade caíra num buraco negro. Todas as frases e todos os parâmetros não serviam mais para nada. Era a escuridão, só a escuridão. A surpresa foi ainda mais abrupta porque haviam anunciado, alguns anos antes, que a história estava morta. O famoso “fim da história”, profetizado em 1806 pelo filósofo alemão Georg Hegel, finalmente chegara, com dois séculos de atraso. O filósofo queridinho da Casa Branca e de Bush Pai, Francis Fukuyama, nos havia prevenido. A história estava morta. Ela havia sobrevivido a 1989, ano que viu o desmantelamento do império soviético, o fim da Guerra Fria e a paz universal se estender pelo planeta sob a batuta da única superpotência ainda em funcionamento, o império americano. Mas, naquele 11 de Setembro, eis que a história subitamente voltava, e voltava devastadora. Os aviões fantasmagóricos de Nova York desmentiam com desdém as filosofias edulcoradas de Fukuyama e Bush Pai. Era a história que se mostrava mais furiosa que nunca. Marco. Se tentássemos dividir o tempo, poderíamos dizer que o século 20 acabou em 1989. Em seguida, após um breve período de transição, o século 21 começaria, no 11 de setembro de 2001. Hoje, transcorridos 15 anos, os contornos do novo século, na Europa e particularmente na França, são visíveis. O 11 de Setembro mudou nossas cidades, nossos hábitos, nossas viagens, nossas fronteiras, as nações. Todos os cidadãos estão de sobreaviso. Nos aeroportos, escolas, monumentos, lojas, festas, estádios, boates, encontros literários, creches, há bandos de agentes de segurança abrindo bolsas à procura de pistolas. Nas ruas, nas estações, nos comícios, soldados vigiam, arma em punho. E essas medidas de segurança, longe de afrouxarem com o correr dos anos, endurecem, multiplicam-se. Pois o 11 de Setembro não só não foi um episódio solitário, sem antecedentes e sem posteridade, mas jamais deixou de manifestar sua formidável fertilidade. O ventre da serpente é cada vez mais fecundo. Como os terremotos são seguidos de novos tremores, a tragédia de 2001 se prolongou em réplicas tão atrozes quanto a matriz mefítica, numa litania interminável de cidades devastadas - de Mumbai a Londres, de Madri a Túnis. Os mortos se contam às centenas. A França é o alvo preferido dos alucinados pela morte: que o contem os jornalistas do Charlie Hebdo, os cafés e as ruas do 13 de Novembro de 2015, a festa do 1º de Julho em Nice, um velho padre degolado em sua igreja... A via-crúcis do Ocidente é um caminho de bárbaros. Pode-se argumentar que o 11 de Setembro foi obra de um grupo, a Al-Qaeda, chefiada por Osama bin Laden. Ora, Bin Laden, depois de anos sumido, foi morto pelos americanos, e a Al-Qaeda, superada por outra organização, o Estado Islâmico, cujos objetivos e estratégias são diferentes. É verdade, mas não nos esqueçamos de que o EI, que, ao contrário da Al-Qaeda, se implantou territorialmente, no Iraque e na Síria, nasceu de uma cisão no interior da nebulosa Al-Qaeda. São gêmeos - inimigos de morte, mas cúmplices. Mesmo que atuem de modo diferente, seus mantos ensanguentados são feitos do mesmo tecido. O EI é filho da Al-Qaeda, filho do 11 de Setembro. Além disso, após anos de hibernação, a Al-Qaeda acorda e volta a matar. Num ponto, o EI inovou. Em lugar de ser sem fronteiras, sem nação, sem pátria, sem geografia e, se nos permitem, “sem terra”, como foi a Al-Qaeda, o EI se inscreveu na geografia criando um Estado que ocupa um lugar no mapa-múndi, entre a Síria e o Iraque. Também se inscreveu na história: o EI é herdeiro do glorioso Império Otomano, que reinou cinco séculos, de 1299 a 1923, a partir da Turquia. Essa volta do grupo terrorista à história e à geografia tem seus efeitos. O EI causa uma imensa desordem no Oriente Médio, já sangrando pelas guerras sacrílegas lançadas no Afeganistão, em 7 de dezembro de 2001, e no Iraque, em 3 de abril de 2003, em resposta aos atentados. A dupla infernal (de uma infernal estupidez) Bush-Tony Blair conseguiu assim multiplicar ao infinito as consequências do 11 de Setembro. Foi, pois, num Oriente Médio ferido, desmembrado, humilhado e galvanizado pelo ódio ao Ocidente que o EI se instalou. E rapidamente encontrou novo combustível nas chamadas primaveras árabes, especialmente na que tenta destituir Bashar Assad, na Síria. Sobre o cadáver purulento do Oriente Médio, os assassinos do EI se unem e incendeiam uma região imensa, que compreende Iraque, Síria e Líbia. De passagem, dão a potências ameaçadoras como a Rússia e a Turquia a brecha para se infiltrarem no campo de ruínas. Refugiados. Um novo drama começa, primeiro para o Oriente Médio, depois, para a Europa. Milhões de civis fogem dos campos de batalha, correndo de uma fronteira para outra, entrando no pequeno Líbano asfixiado por milhões de fugitivos sem abrigo, amontoados em acampamentos desumanos. Esse êxodo sem precedentes está mudando a face do mundo. A meta final desses deslocados não é o Oriente Médio, onde a morte se banqueteia, se farta de cadáveres, como uma hiena. É a Europa. As pessoas se lançam ao mar. Uma parte vai morrer nas águas do Mediterrâneo. Outra, desembarca na Itália, depois na Grécia, depois de novo na Itália. Aí começa uma nova viagem. Milhões de homens, mulheres e crianças chegam a fronteiras cada vez mais fechadas. Exaustos, prostrados, tornados maus pelo sofrimento, eles formam uma população que pode se converter num viveiro de terroristas. Entre esses exilados, o EI introduziu agentes, com tanto êxito que a presença das hordas se tornou o horror das populações do Velho Continente. A morte tem à disposição todo um exército de exilados prontos a atacar. Esse êxodo, esse morticínio, essa infâmia nasceram no momento pressago em que, durante inconcebíveis segundos, os aviões atingiram as torres gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001. Desde aquele dia maldito, a tragédia se desdobrou . Uma outra consequência do 11 de Setembro começa a aparecer: a Europa se desintegra. O sonho (antinatural, é verdade) de uma Europa unida, comunitária, sem fronteiras, sucumbe sob as multidões alucinadas. Frente a esse desafio, a unidade da Europa voa em pedaços. Cada país age por sua cabeça. Os ricos, gentis e hipócritas, como a França, fingem acolher os exilados e os repelem friamente. Os países pobres e cínicos da Europa Oriental erguem barreiras. O “cada um por si” os embriaga e o fascismo se instala (na Hungria, Polônia, Eslováquia e mesmo na Áustria). Egoísmo, ódio ao árabe, trancas, cadeados - eis o que o 11 de Setembro legou à União Europeia. Um único país se mostra digno da filosofia e das religiões cristãs da Europa: a Alemanha. Por causa disso, a poderosa chancelar balança em seu trono. A essa radicalização da Europa, as minorias asiáticas e africanas instaladas há anos nos países europeus respondem com uma fuga para o ódio. São esses os presentes que o 11 de Setembro deu à Europa: intolerância, desprezo, desconfiança, ódio. Os franceses vivem com medo.  As minorias muçulmanas fixadas na Europa há anos respondem a tal torrente de desprezo com as mesmas armas pestilentas: ódio, injúrias, violência, ameaças e, às vezes, agressões. Embora a imensa maioria dos muçulmanos franceses seja tolerante, pacífica e feliz, o ódio é a única coisa que se ouve. Uma consequência disso é o aumento da prática religiosa entre a diáspora francesa. As mesquitas proliferam e os imãs nem sempre pregam mais a tolerância e a coabitação. Está sendo proclamado, cada vez mais, um Islã de combate. A linguagem é testemunha desse afundamento: nos subúrbios não se fala mais em franceses ou em cristãos. Fala-se em cruzados, os exércitos cristãos que, mil anos atrás, se puseram em marcha em direção à Palestina para retomar lugares santos originando 200 anos de carnificina. É essa última vitória - a mais amarga, mais perversa, mais sombria - dos camicases de Nova York, ajudados por George W. Bush, Tony Blair e, mais tarde, pelos franceses racistas, xenófobos ou simplesmente estúpidos: levar ao coração da pacífica Europa um choque de civilizações, e, ainda mais assustador, uma guerra religiosa. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ