Plano de Obama anima ‘cubanautas’ levados a filas e trapaças para ter web

Ao orientar expressamente empresas americanas a investir em tecnologia em Cuba, atribuindo às sanções americanas a defasagem local no acesso a informação, presidente dos EUA dá perspectiva a quem espera internet razoável e aberta

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Por Havana
Atualização:
Fila na estatal de telefonia e internet de Cuba Foto: Rodrigo Cavalheiro

Alguém que chegue a Havana em busca de hospedagem em uma “casa de família”, forma mais barata de dormir em Cuba, deve ser discreto ao perguntar se o local tem internet. “Ele quer um quarto com ‘aquilo’”, grita uma cubana sem conexão, Marta, à vizinha do terceiro andar, Elisabeth, que tem “aquilo”. A internet na ilha é tão rara e ruim que usuários fazem fila no mercado oficial e fornecedores criam um paralelo.

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Tal cenário, em que pronunciar internet é perigoso, pode mudar em função de três frases do discurso de 15 minutos de Barack Obama na quarta-feira. “Creio no livre fluxo da informação. Infelizmente, nossas sanções a Cuba negaram ao país o acesso à nova tecnologia que deu novas habilidades aos indivíduos em todo o mundo. Por isso, autorizei o aumento das conexões de telecomunicações entre os EUA e Cuba”, disse Obama, na fala que, simultaneamente à de Raúl Castro, marcou o início da retomada de relações após 53 anos de afastamento. “Recebemos com satisfação a decisão de Cuba de dar maior acesso à internet aos seus cidadãos”, insistiu Obama. 

No papel, o elogio do americano tem sentido. Um em cada quatro cubanos tem acesso à rede, segundo o Escritório Nacional de Estatística (ONE). Na conta estatal, entretanto, entram centros que oferecem conexão de baixo custo a uma intranet, onde apenas estão disponíveis e-mail, páginas oficiais e educativas, uma espécie de Wikipédia cubana e sites de nações amigas. Quem quer acesso à rede tradicional, com diversidade de opiniões, tem duas opções: telecentros estatais (US$ 4,5 por hora) com longas filas ou grandes hotéis (entre US$ 6 a US$ 8 por hora). Isso restringe o acesso a 5% dos cubanos.

Às 7h15 de sexta-feira, Elys López, de 29 anos, estava em uma fila na unidade central da empresa estatal de comunicações, a Etecsa, em Havana, na Rua Obispo. Esperava para instalar o acesso a e-mail no celular cubano, serviço pelo qual o Estado cobra US$ 1,50 por mês e US$ 0,20 por mensagem. Não há opção para ter internet no aparelho. Moradora da Alemanha, onde estuda alemão e pretende cursar um master em comunicação, ela disse levar um “choque tecnológico” a cada regresso para visitar a mãe, Nora, que esperava a seu lado a loja abrir, às 8h30.

“Essa aproximação anunciada por Obama e Raúl vai melhorar. Meu sonho seria colocar rede em casa para minha mãe falar comigo por Skype”, disse, na fila de 70 pessoas, composta também pelos cubanos que desejavam usar os computadores com acesso à internet. “É preciso esperar pra ver”, ponderava a mãe, de 63 anos, que deve sair pela primeira vez da ilha para rever a filha em 2015. Ela faz questão de ir no verão alemão.

Pelos planos de Obama, companhias americanas não só poderão vender equipamentos e programas, mas serão estimuladas a investir em infraestrutura em Cuba. À revista Time, o analista Larry Press, blogueiro que acompanha a tecnologia local, associou a ilha a um “campo aberto”. Como quase não há estrutura, poderia ser instalada diretamente uma rede de altíssima velocidade – algo semelhante ao que ocorreu nas localidades em que o celular apareceu antes do cabo telefônico. Para isso ocorrer, seria essencial a permissão do regime a uma internet totalmente livre.

Um acesso assim pode alterar a visão que os cubanos têm do mundo e, por consequência, de si. Esta era a intenção do governo americano ao autorizar em 1992 companhias a providenciar serviços eficientes de telecomunicação entre os EUA e Cuba. Naquela época, começou o chamado “período especial”, em que Cuba deixou de ter subsídios com o fim da URSS e entrou numa crise econômica amenizada por uma forte abertura ao turismo. Os cubanos não tinham acesso a comida, muito menos chance de consumir tecnologia.

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A justificativa do governo para o acesso restrito à internet é a conexão por satélite utilizada antes da instalação de um cabo submarino que liga o leste de Cuba à Venezuela, entre 2010 e 2011. A ilha está impedida de se conectar a cabos internacionais que passam perto de sua costa, em razão do embargo dos EUA, iniciado em 1960. O governo afirmava priorizar seu uso em escolas, universidades e em outras instituições estatais. 

O cabo de fibra ótica venezuelano, que prometia ampliar o acesso, começou a funcionar no ano passado. Isso permitiu a chegada de 52 mil internautas, com a abertura de 118 salas de navegação, mas não mudou a qualidade. Muito menos levou a internet às residências. 

Em Cuba, as autorizações para ter web em casa são raras. O privilégio é reservado a especialistas, como médicos, jornalistas e engenheiros ligados a universidades ou ativistas como a blogueira Yoani Sánchez, que tem financiamento estrangeiro.

Vizinho de Elisabeth, o radialista Javier também aluga quartos em Havana Vieja, o centro histórico da capital cubana. Ele tem um conexão legal em casa graças ao pai, um professor universitário que usa a rede à noite, enquanto ele “navega” de manhã. Tem direito a 80 horas por mês, a uma velocidade que varia “entre 40 e 42 Kb/s, com sorte 45 Kb/s”. Isso equivale à de uma rede discada de má qualidade. “Na prática, quem tem o privilégio e precisa de dinheiro subloca a rede. Também é comum alugar a linha de estudantes estrangeiros, que por lei têm direito à rede”, explica com naturalidade. No mercado paralelo, um estrangeiro cobra US$ 120 para abrir um contrato e depois US$ 50 por mês para ser o intermediário. Soma-se a isso pagamento ao Estado, de US$ 30 por 60 horas. O salário médio de um cubano é de US$ 20.

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“É um lixo. Alguns sites simplesmente estão bloqueados. Outros são livres, mas evito navegar neles para não ser pego pela censura e me incomodar. Me informo olhando os títulos, mas não clico nas matérias”, explica Javier. Por ter somente cinco canais estatais na TV, ele costuma “sondar” as notícias do espanhol El Mundo e do americano El Nuevo Herald, de linha conservadora.

Com uma conexão ilegal “àquilo” em sua sala, Elisabeth aluga seus quartos com maior frequência, embora cobre os mesmos US$ 25 que Marta pela diária – preço tabelado pelo Estado para dar renda a quem tem até duas habitações para turistas. “Estou com todas lotadas esta semana”, explica. Sobrenomes foram omitidos a pedido de Marta, Elisabeth e Javier.

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