Prédio de 45 andares expõe saga dos sem-teto de Caracas

Edifício de escritórios inacabado simboliza decadência financeira e crise habitacional que [br]marcam era Chávez

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Por Simon Romero e Maria Eugenia Díaz
Atualização:

Os arquitetos ainda chamam o arranha-céu de 45 andares de Torre de David, numa referência a David Brillembourg, o audacioso financista que começou a erguê-lo na década de 90. O edifício de escritórios, um dos mais altos da América Latina, deveria ser um símbolo da ousadia empresarial da Venezuela. Mas agora, invadido por mais de 2.500 sem-teto que fizeram dele o seu lar, o edifício simboliza algo muito diferente no centro de Caracas. Os invasores moram no edifício inacabado, que não tem sequer elevador. O cheiro do esgoto não tratado enche os corredores. As crianças escalam as escadas sem iluminação guiando-se pelas luzinhas dos celulares. O arranha-céu, cercado por cartazes e murais que proclamam o progresso da "revolução bolivariana" do presidente Hugo Chávez, é um símbolo da crise financeira que atingiu o país na década de 90, o crescente controle estatal da economia com a chegada de Chávez ao poder, em 1999, e a escassez de habitações que se agravou desde então, levando a um número cada vez maior de invasões de edifícios na cidade. São poucos os terraços que têm proteção. Em muitos andares faltam até paredes e janelas. Entretanto, podem-se ver dezenas de antenas parabólicas da DirectTV do lado de fora. "Nunca perco de vista minha filha", disse Yeaida Sosa, 29, que mora com a criança de 1 ano, Dahasi, no 7.º andar. Yeaida disse que os moradores ficaram horrorizados recentemente quando uma menina morreu em consequência da queda de um andar alto. "Deus decide quando deveremos entrar para o seu reino", disse Enrique Zambrano, 22, um eletricista que mora no 19.º andar. Como muitos outros sem-teto que moram no edifício, ele se diz cristão evangélico. Seu pastor é Alexander Daza, 33, ex-integrante de uma gangue que descobriu a religião na cadeia. Daza, conhecido como El Niño ("O menino"), liderou a ocupação da Torre de David, em outubro de 2007. Na época, o prédio já estava desocupado havia mais de dez anos. Seu incorporador, Brillembourg, um rico criador de cavalos, morreu de câncer aos 53 anos, deixando empresas cheias de problemas. O governo ficou com seus bens, inclusive o arranha-céu inacabado, durante a crise dos bancos de 1994. Robert Neuwirth, autor de Shadow Cities (As cidades fantasmas), um livro sobre invasões de sem-teto em quatro continentes, disse que a Torre de David é talvez o mais alto edifício do mundo ocupado por invasores. Escassez. Outrora uma das cidades mais desenvolvidas da América Latina, Caracas agora sofre de uma profunda escassez de habitações, cerca de 400 mil unidades, o que gera invasões de famílias sem-teto. Nos arredores da Torre, elas ocuparam outros 20 imóveis. A construção privada de casas na cidade praticamente parou por causa do temor das expropriações. O governo, com sua ineficiência, construiu poucas casas para os pobres. A política para os sem-teto também não é muito clara e está sempre mudando, permitindo efetivamente que muitos se fixem em imóveis desocupados. Chávez determinou que os invasores sejam despejados. Mas, em janeiro, ele incentivou os pobres a ocupar terrenos sem uso em áreas caras de Caracas. Depois, pediu que eles tivessem "paciência" enquanto o governo procura construir casas para as faixas de baixa renda. A Torre de David é uma parábola de esperança para alguns e de terror para outros. Ali, os sem-teto estabeleceram uma espécie de ordem no prédio que agora consideram como seu. Sentinelas com walkie-talkies guardam as entradas. Cada andar habitado tem eletricidade, por meio de ligações improvisadas na rede de energia, e a água é transportada do andar térreo. Em um andar funciona um salão de beleza. Em outro, um dentista sem licença. Quase todos os andares têm um pequeno botequim.José Hernández, de 30 anos, vive em um apartamento que outrora deveria ser o escritório de um banqueiro. Ele próprio usa gravata e paletó todos os dias para trabalhar - nada menos que em um banco. "Eles me chamam de invasor e eu trabalho no departamento de crédito do Banco da Venezuela." / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

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