Primeira repórter a noticiar início da 2ª Guerra morre aos 105 anos

Em agosto de 1939, aos 27 anos, Clare Hollingworth viajou sozinha para a fronteira com a Alemanha e testemunhou a primeira coluna de tanques nazistas se mobilizando para invadir a Polônia

PUBLICIDADE

Atualização:

HONG KONG - No início de 1939, a ativista Clare Hollingworth viajou para a fronteira entre a Polônia e a Alemanha para ajudar judeus e outros refugiados que fugiam da região dos Sudetos, anexada pelo regime nazista. Retornando rapidamente à Inglaterra natal, Clare – então com 27 anos –, que certa vez afirmou “gostar de estar numa guerra”, foi contratada como correspondente em tempo parcial em Katowice, na Polônia, para o Daily Telegraph, de Londres.

Três dias depois de começar no novo trabalho, a jovem repórter conseguiu um dos maiores furos jornalísticos do século 20: a invasão de Hitler na Polônia, marcando a eclosão da 2.ª Guerra.

A jornalista Clare Hollingworth, que noticiou o começo da Segunda Guerra, morreu aos 105 anos Foto: Of Fortunes & War: Clare Hollingworth, First of the Female War Correspondents

PUBLICIDADE

Clare, que morreu ontem aos 105 anos, tinha ido para a Alemanha com o o objetivo de transmitir uma melhor sensação do perigo iminente. Sem mencionar o motivo, ela pediu emprestado um veículo diplomático de seu ex-amante, o cônsul britânico em Katowice, consciente de que a bandeira inglesa no veículo lhe permitiria atravessar a fronteira vigiada.

Na volta, seu carro foi ultrapassado por dezenas de mensageiros militares alemães a bordo de motocicletas. “Eu estava percorrendo um vale e havia um anteparo de juta que impedia a visão”, ela contou ao Telegraph mais de 70 anos depois. “De repente, soprou um vento forte, que sacudiu a tela presa por cordas, e olhando para o vale vi dezenas, senão centenas, de tanques.”

Clare telefonou para o correspondente do Telegraph em Varsóvia e ele enviou um artigo de primeira página publicado em 29 de agosto de 1939, com o título: “Mil tanques estão reunidos na fronteira da Polônia. Dez divisões estariam preparadas para um ataque instantâneo”. 

Três dias mais tarde, Clare acordou com o barulho de aviões alemães e de tanques Panzer invadindo a Polônia. Depois de notificar seus editores, telefonou para a embaixada britânica em Varsóvia e declarou: “Já começou”.

Desse modo, começou uma carreira que duraria cinco décadas na qual Clare cobriu conflitos da Argélia ao Vietnã, da Grécia ao Iêmen. Clare morreu em Hong Kong, onde vivia desde os anos 80. 

Publicidade

A jornalista, que costumava trajar roupa de safári e às vezes carregava consigo um revólver com cabo de madrepérola, marchava com as tropas, testemunhou combates pesados, viajou até esconderijos de rebeldes e não parava nem durante bombardeios aéreos. Na Caxemira, ao atravessar de carro uma ponte que estava sendo bombardeada por tropas paquistanesas, ela comentou com um colega: “Isso sim torna a vida digna de ser vivida.”

Durante a campanha no deserto do Norte da África, na 2.ª Guerra, o comandante britânico Bernard Montgomery (“sujeito que detestava as mulheres”, ela escreveria mais tarde) expulsou Clare do seu contingente de jornalistas, afirmando que as linhas de guerra não eram lugares para mulheres. Ela, então, se uniu às tropas americanas sob o comando do general Dwight Eisenhower em Argel.

Para se preparar, Clare dormia no chão do seu apartamento. Ela aprendeu a saltar de paraquedas e a pilotar um avião. Sabia identificar os tipos de balas e granadas pela acústica ao serem disparadas. Clare considerava outras jornalistas de guerra, como Martha Gellhorn, a glamourosa mulher de Ernest Hemingway, e Clare Boothe Luce, casada com o editor das revistas Life e Time, elitistas mimadas. 

O posto mais importante que ela assumiu foi em 1973 ao ser indicada correspondente na China do Telegraph, cobrindo a morte de Mao Tsé-tung e a luta pelo poder que se seguiu.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Mais tarde, ela refletiu sobre uma carreira passada no fio da navalha, lembrando que estava a 200 metros do Hotel Rei David em Jerusalém quando terroristas judeus bombardearam o prédio, em 1946, deixando 91 mortos.

Raízes. A jornalista nasceu em Knighton, no Reino Unido, em 10 de outubro de 1911. Seu pai, que dirigia uma fábrica de sapatos, adorava história e incutiu nela seu interesse por guerras levando-a a visitar os campos de batalha de Crecy, Pitiers e Agincourt. 

Ainda muito jovem ela já infringia as conservadoras normas britânicas, deixando uma escola de etiqueta e desfazendo um noivado com um amigo da família. Tornou-se secretária de um grupo afiliado da Liga das Nações, predecessora das Nações Unidas. Com a aproximação da 2.ª Guerra, ela conseguiu emprego num grupo de apoio a refugiados que a enviou para a Polônia. Clare foi escolhida para a tarefa, que exigia uma viagem de trem por Berlim, graças a um visto alemão que obteve para esquiar nos Alpes durante férias.

Publicidade

Sua vida pessoal também teve sua dose de drama. Ela se casou com dois de seus diversos namorados – o escritor Vandeleur Robinson, do qual se divorciou, e Geoffrey Hoare, que morreu em 1965. Pretendendo acabar com um romance que o marido mantinha com outra mulher, ela ameaçou a amante dele com uma pistola alemã.

A vida de Clare foi definida pelo enorme prazer de viajar. Por volta dos 60 anos, quando tinha por missão cobrir atividades relativamente sérias do Ministério da Defesa britânico, era conhecida por chegar ao edifício do jornal com um saco de dormir, perguntando aos editores: “alguma viagem para o exterior? Alguma guerra?”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA E TEREZINHA MARTINO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.