Ramadã, período estratégico da guerra

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

O astronauta nos tornou familiar a noção de "janela de lançamento": o momento em que um foguete pode ser lançado no cosmos de modo a se inserir com êxito na geometria complicada do céu. E então: na guerra do Afeganistão há "janelas de lançamentos". E os americanos as conhecem. Essas janelas são ditadas por dois parâmetros, ambos modulados pelos astros. Duas datas-limite: por um lado, a chegada do inverno, que é atroz, nas montanhas cheias de surpresas. E, por outro lado, o Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos (um dos cinco pilares, ou "arcanos" do Islã), que se inicia no dia 17 de novembro (com diferenças de um ou dois dias conforme o país). Certamente, o Ramadã não prescreve, formalmente, a suspensão das guerras durante o mês "do destino". É o que permite ao ministro da Defesa americano, Donald Rumsfeld, dizer que "não há calendários a serem respeitados". Diz ele: "A história é cheia de exemplos de nações muçulmanas em guerra durante as festas religiosas". É verdade. E, no entanto, como sabem Colin Powell, mais perspicaz que Rumsfeld, ou alguns governantes muçulmanos moderados (Indonésia, Egito), ao bombardear o Afeganistão durante o Ramadã corre-se o risco de fazer os países muçulmanos que optaram pela "coalizão de G.W. Bush" oscilarem para o lado dos extremistas, para o lado dos "fanáticos por Deus". Por exemplo, o Paquistão, esse enorme país cujo presidente, o general Mousharraf, inteligentemente desarraigou-se de seus delírios islamitas para dar seu apoio aos americanos. Mousharraf, chefe de um país muçulmano, anda na beira do abismo. Ele sabe disso. E ataques durante o Ramadã poderiam ser fatais para ele. Ora, como diz um oficial americano: "Se nos livrarmos de Bin Laden e dos talebans, mas abandonarmos o Paquistão nos braços de um "avatar" dos talebans, teremos perdido a guerra!". Por que o Ramadã tem uma auréola de tamanha "sacralidade"? Por causa do Corão, o livro santo, ditado a Maomé exatamente no mês do Ramadã, ou seja, no nono mês lunar do calendário árabe (o calendário árabe não é solar, como o cristão, mas lunar, o que explica que o mês do Ramadã dure 28 ou 29 dias e não 30 ou 31, como os meses no Ocidente). O que aconteceu naquela noite do dia 26 ou 27 do mês do Ramadã no ano 610? Maomé tinha, então, 40 anos, uma vez que tinha nascido em Meca, uma cidade de caravanas, em 570 ou 571. Então, naquela noite (que os muçulmanos denominam "noite do destino"), Maomé foi ao Monte Herat, uma colina ao norte da Meca. É lá que começa a "revelação". Como? Foi um anjo, chamado Gabriel (em árabe, Jebraïl) que soprou o Corão para Maomé. "Leia, em nome de teu Senhor que tudo criou", disse Gabriel. Esse verso é parte do "versículo 96", que tem como título "O coágulo de sangue": "Leia, em nome de teu Senhor que tudo criou: Ele criou o homem a partir de um coágulo de sangue/Leia.../Pois teu Senhor é o Muito-Generoso/que instruiu o homem por meio do cálamo/e lhe ensinou o que ele ignorava./ Bem ao contrário: O homem é rebelde/logo que se vê na abastança/Sim, teu Senhor voltará". Ao lermos esses poucos versos, percebemos a diferença radical entre a revelação cristã e a muçulmana. Para os cristãos a "revelação" é aquela de um homem-deus, encarnado no mundo. Para os muçulmanos, quem fala é Deus em pessoa, por intermédio de Gabriel. O "versículo 62" diz isso de maneira magnífica: "Deus fala atrás de um véu". O diálogo entre Maomé e Gabriel dura 12 anos, entrecortado por lacunas, momentos de terror. Às vezes, Maomé se refugia junto a uma de suas mulheres (Khadija), quer se jogar do alto de uma montanha, mas finalmente torna-se o arauto e o soldado de Deus e, três anos após a "revelação", ele passa a pregar. Conseqüentemente, passa a enfrentar outras dificuldades, sobretudo na Meca - cidade idólatra, hostil a qualquer idéia de Deus único e que zomba desse iluminado com seus versículos. Começa aí a história do islamismo. Essa é a origem do jejum do mês do Ramadã. Para comemorar o "ditado" do Livro, na verdade, todo fiel é obrigado a um jejum diurno absoluto, desde o momento em que a aurora permite distinguir "o fio branco do fio negro" até a noite. Ausência total de alimentação e de relações sexuais. As noites, ao contrário, não são acompanhadas de restrição alguma, o que leva, às vezes, a momentos de muita algazarra, mas procura-se discipliná-los proibindo os exageros sexuais ou gastronômicos. Em suma, o Ramadã, por meio do jejum e da abstinência, comemora o "ditado" de Deus e, ao mesmo tempo, os primeiros dias da aventura terrestre do islamismo. Isso significa que ele é revestido de dois sentidos: um sentido puramente espiritual, mas também um sentido histórico: o início do islamismo. O jejum do Ramadã é respeitado mesmo pelos muçulmanos que não mais praticam as cinco preces cotidianas. Mesmo os infiéis mais aguerridos teriam escrúpulos de romper o jejum em público. É compreensível que os americanos se perguntem sobre o que acontecerá se, após 17 de novembro, dentro de menos de um mês, as tropas americanas e os aviões continuarem a guerra contra um país muçulmano. A solidariedade de uma parte do bilhão de muçulmanos vivos ameaça sacudir a solidez da "coalizão". E, para reforçar "a proibição sagrada", o mês de novembro é também o do início do inverno, um inverno que, nesse alto país, é uma longa tragédia de neve, de gelo, de trevas e de isolamento. Leia o especial

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.