Renasce o 'grande líder'

PUBLICIDADE

Por CHRIS PATTEN e PROJECT SYNDICATE
Atualização:

Duzentos anos se passaram desde a batalha de Waterloo, na qual a catastrófica derrota de Napoleão afetou de maneira tão profunda a imagem que o seu país tinha de si próprio que o general Charles de Gaulle, em sua historiografia do Exército francês, simplesmente a omitiu. Não obstante, Napoleão, assim como de Gaulle, poderia facilmente fazer parte de qualquer lista dos grandes líderes da história - pressupondo, evidentemente, que "grandeza" seja considerada uma característica individual. Marx e Tolstoi diriam que o "grande líder" não existe. Para Marx, a luta de classes na França criou as circunstâncias graças às quais uma "grotesca mediocridade" - isso é, Napoleão - foi transformada em herói. Para Tolstoi, Napoleão não foi um general excepcional e foi levado à vitória pela coragem e dedicação dos soldados franceses que ganharam a Batalha de Borodino. Se Napoleão foi grande ou não, resta decidir se todos os líderes merecem essa descrição. E, se não for isso, quais são eles? Aparentemente, dois importantes critérios definem uma grande liderança, ambos destacados pelo filósofo político Isaiah Berlin. Em primeiro lugar, o líder sabe reconhecer em que direção sopram os ventos da História. Otto von Bismarck sabia, assim como seu colega alemão Konrad Adenauer; ambos, na frase memorável de Bismarck, ouviam "o flutuar do manto de Deus". Em segundo lugar, será que um líder precisa fazer escolhas importantes? Evidentemente, se o líder é forçado a tomá-las, não pode receber o crédito nem a culpa por isso. Portanto, a questão fundamental é o fato de o líder ter a oportunidade de avaliar alternativas, e escolher a correta para seu país. Reconstrução. É por isso que De Gaulle quase certamente se encontra em todas as listas dos grandes homens. Praticamente sozinho, ele salvou a França do rebaixamento depois da 2.ª Guerra. Ao retornar ao poder em 1958, salvou o país pela segunda vez: frustrou duas tentativas de golpe, acabou com a guerra na Argélia e inspirou a Constituição da Quinta Republica. Assim como o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Winston Churchill, De Gaulle deu à França uma nova visão de mundo que estabeleceu seu lugar na ordem global do pós-guerra. Na realidade, as visões de mundo que De Gaulle e Churchill estabeleceram para os respectivos países resultaram algo influentes demais. Seus sucessores continuaram percebendo o mundo - e o papel dos seus países - de maneiras que restringiram a discussão racional e distorceram a tomada de decisões por muitos anos. Consequentemente, nenhum líder posterior em ambos os países se compara a eles. Mas existe outro primeiro-ministro britânico que talvez se aproxime bastante dessas duas personalidades: Margaret Thatcher, figura extremamente controvertida, amada por alguns e abominada por outros. Até sua renúncia, 25 anos atrás, foi instigada por um motim em seu próprio gabinete. Mas não é preciso ser amado universalmente. O fato é que nem os detratores de Thatcher podem negar sua influência. Primeira mulher eleita chefe de Governo da Grã-Bretanha, Thatcher contribuiu para reverter o declínio econômico do país. Além disso, seu ataque aos sindicatos excessivamente poderosos tornou a Grã-Bretanha governável numa época em que o país parecia prestes a ir à deriva e cair na desordem. Ela é certamente uma candidata ao status de grande líder. Do mesmo modo, Deng Xiaoping, da China, pode candidatar-se a grande líder, apesar de seu histórico longe de ser imaculado. Além de realizar operações obscuras como um dos principais assessores de Mao, Deng desempenhou um papel decisivo no massacre da Praça Tiananmen, em 1989. Mas também abriu o mercado e colocou o país no caminho de um crescimento e de uma prosperidade sem precedentes, permitindo que centenas de milhões de chineses saíssem da pobreza. Dimensões. Muitos considerariam Lee Kuan Yew, fundador e por muito tempo primeiro-ministro de Cingapura, igualmente grande, embora provavelmente ele tivesse desejado testar sua coragem numa arena maior. Na realidade, parece que o tamanho afeta a capacidade de uma pessoa de assegurar-se o status de grande líder. Não é minha intenção ofender a Casa Real de Luxemburgo quando afirmo que é improvável que um grande líder surja daquele minúsculo país, principalmente considerando sua política. Os EUA são certamente grandes o bastante para produzir grandes líderes. Alguns dos seus presidentes fizeram de fato grandes coisas. Harry Truman e Dwight Eisenhower mostraram um excelente julgamento quando estabeleceram a ordem internacional do pós-guerra que permitiu garantir a paz em grande parte do mundo durante décadas. Outros, como Ronald Reagan e Bill Clinton, tinham grandes dons pessoais - por exemplo, a capacidade de inspirar ou o talento da persuasão. John F. Kennedy tinha um pouco de ambos. Ele foi o autor de um grande feito: resolveu a Crise dos Mísseis em Cuba. Seu dom de motivar as pessoas não foi igualado, de fato, sobreviveu a ele e seu assassinato consolidou um poderoso legado. Na África, ainda não surgiu uma grande figura desde a morte do presidente sul-africano Nelson Mandela, que aliava coragem, autoridade e magnanimidade em suave abundância. Ele foi um dos líderes mais carismáticos e fascinantes que conheci. Os outros dois são o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e o ex-secretário de Estado americano, Colin Powell - respectivamente africano e afro-americano. E hoje? O único europeu contemporâneo que pode reivindicar o manto da grandeza é a chanceler alemã Angela Merkel, líder de fato da União Europeia. Como o ex-chanceler Helmut Kohl, ela foi subestimada inicialmente, mas sabe quais são as grandes decisões. Kohl negociou condições generosas para a reunificação alemã; Merkel enfrentou o presidente russo, Vladimir Putin, por ocasião da sua intervenção na Ucrânia, e adotou uma postura generosa na crise dos refugiados. Marx e Tolstoi estavam errados, na minha opinião. A liderança política - e aqueles que a exercem - pode fazer uma grande diferença, para melhor ou para pior. Merkel é hoje um dos maiores exemplos disso, porque define o rumo que a Europa deve seguir para solucionar a desafiadora crise existencial que enfrenta. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA * É POLÍTICO E FOI O ÚLTIMO GOVERNADOR BRITÂNICO DE HONG KONG  

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.