Selma contrariou os enredos simples

Momento crucial da luta pelos direitos civis nos EUA completa 50 anos

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Por Gay Talese
Atualização:
Milhares participarão de eventos para recordar a marcha; Obama discursará hoje em ponte onde polícia reprimiu protestos Foto: Justin Sullivan/Getty Images/AFP

SELMA, EUA - No centro de Selma, na semana passada, tentei retraçar o caminho que segui há 50 anos acompanhando as centenas de manifestantes em defesa dos direitos civis pela Ponte Edmund Pettus e na direção da estrada bloqueada por policiais brancos hostis que logo depois transformaram aquele dia no Domingo Sangrento. Minha atenção se dirigiu para a vigorosa atividade de um homem de meia-idade que, com uma pá, cavava buracos entre o meio-fio e a calçada da Broad Street, que leva à ponte. Ele então começou a plantar azaleias, amor-perfeito e pequenas árvores que tirava de um caminhão Ford 1997 estacionado ao lado e pertencente à empresa Steavie’s Landscape Design and Construction.

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“Não sou Steavie” disse, quando fixei meus olhos nele por um tempo e finalmente me aproximei para lhe fazer, ele supunha, perguntas incômodas. Os agentes da segurança e outros funcionários de fora da cidade caminhavam pela área preparando a chegada do presidente Barack Obama no sábado, 7, para o Jubileu da Travessia da Ponte. Mas o jardineiro provavelmente me achou muito velho para causar muitos problemas (sou um jovial senhor de 83 anos) e assim se tranquilizou. Encostado em sua pá, estendeu a mão e disse: “Sou irmão de Steavie”.

E explicou que ele e alguns amigos estavam ajudando Steavie no trabalho patrocinado pela cidade para deixar mais bonita a área central de Selma. “Temos poucos dias para concluir o trabalho”, disse, admitindo que forrar as calçadas de flores e arbustos numa cidade com recursos limitados e muitas vitrinas de lojas vazias era pedir muito para a empresa de paisagismo de Steavie.

O irmão de Steavie tinha 59 anos e nasceu em Selma. Enquanto conversávamos ele abria um largo sorriso que aumentava o fino bigode.

“Meu nome é Ricky Brown. Na época do Domingo Sangrento eu tinha 9 anos. Minha mãe estava muito preocupada para me deixar ir à manifestação, mas minha irmã mais velha, que estava com 15 anos, foi. Quando as tropas do Estado e a patrulha do xerife Jim Clark começaram a espancar todo mundo perto da ponte, não ouvi o barulho porque vivíamos no conjunto popular de Carver depois da Brown Chapel, onde o dr. (Martin Luther) King fez sua pregação e a marcha de protesto começou. Mas depois minha irmã chegou às pressas em casa, gritando que havia sido atacada com gás lacrimogêneo, e em seguida a patrulha de Clark começou a vasculhar nossa área atacando as pessoas com cassetetes, jogando no chão quem estivesse à sua frente.

“Eu estava olhando do segundo andar da casa onde vivíamos e tinha uma arma de chumbinho e comecei a atirar nos cavalos da patrulha. Acho que dei uns cinco tiros e atingi vários cavalos. Eu me coloquei entre dois amigos na janela quando comecei a atirar e então um dos homens da patrulha me viu e gritou para seu colega, ‘ei, aqueles meninos negros estão atirando no meu cavalo’. ‘Qual deles?’ perguntou o outro. ‘Não sei’, ele respondeu. “Esses crioulos são todos parecidos’.”

A partir dali foi uma longa jornada que levou Brown a Detroit onde ele conseguiu um emprego numa fábrica de motores e eixos da Chevrolet até que a administração decidiu que robôs fariam o trabalho melhor e depois ele assumiu uma função durante muito tempo como reparador de telhados. Agora está de volta a Selma. “Espero que essas flores que plantamos esta semana tornem as coisas um pouco mais atraentes para muitos visitantes que chegarem para o Jubileu, como você”, disse ele.

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“Comecei a atirar nos cavalos da patrulha. Acho que dei uns cinco tiros e atingi vários cavalos. Eu me coloquei entre dois amigos na janela quando comecei a atirar e então um dos homens da patrulha me viu e gritou para seu colega, ‘ei, aqueles meninos negros estão atirando no meu cavalo’. ‘Qual deles?’ perguntou o outro. ‘Não sei’, ele respondeu. ‘Esses crioulos são todos parecidos’”

Concordei que o paisagismo ajudou, mas expliquei que não estava ali por causa do Jubileu. Estive em Selma dezenas de vezes desde 1950, quando cursava jornalismo na Universidade de Alabama. Estive ali como repórter do New York Times em 1965 para cobrir o Domingo Sangrento e suas consequências, ouvindo brancos irados cuspindo termos racistas na TV no Selma Country Club.

Retornei a Selma novamente em 1990 para cobrir o 25.º aniversário do Domingo Sangrento e a aprovação da lei sobre direito de voto – a comemoração encerrada com a fumaça de um maçarico ao longo da ponte para simular o gás lacrimogêneo inalado em 1965 pelos manifestantes, e sons do sofrimento humano gravados em fita evocavam os espancamentos por Clark e seus patrulheiros. Retornei para um lugar do qual, parece, como Ricky Brown, nenhum de nós consegue escapar.

Selma, localizada num alto penhasco à margem norte do Rio Alabama, tem seu nome baseado na The Song of Selma (A Canção de Selma) de Ossian que teria sido uma tradução do século 18 de um ciclo épico de poemas escoceses do período medieval, mas na verdade era um mistura tosca de lenda e folclore que acabou sendo considerada uma fraude literária. E Selma hoje é um lugar do qual se espera que tenha mais peso simbólico do que uma pequena cidade consegue suportar.

Sem dúvida a história dos direitos civis – a história americana – foi feita aqui. Mas eu cresci em Ocean City, New Jersey, um resort política e socialmente conservador fundado nos anos 1800 por pastores metodistas. Embora estudantes negros frequentassem a escola com os brancos, era uma comunidade muito segregada. Quando frequentei pela primeira vez o câmpus da Universidade do Alabama em 1949 não vi nada tão diferente do que observei na minha infância em New Jersey.

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A história de Selma contraria os enredos simples. Em 1990, compareci a um casamento inter-racial de uma mulher loira, de olhos azuis, de 38 anos chamada Betty Ramsey com um negro de 51 anos de Selma chamado Randall Miller, proprietário de uma empresa de serviços funerários que atendia principalmente a população negra. Na ocasião, ele também trabalhava como diretor de pessoal da prefeitura da cidade em que o prefeito, branco, era Joseph T. Smitherman, cuja maneira simples e simpática convenceu muitos eleitores negros a votar nele e mantê-lo no cargo por 35 anos.

Randall e Betty Miller vivem numa casa de tijolos com oito aposentos e um pátio espaçoso cercado por 1.600 metros quadrados de terra coberta de relva que lembra um campo de golfe. Ele costumava jogar golfe regularmente, não joga mais em razão da demanda da empresa funerária, um dos poucos empreendimentos que continua vibrante numa economia deprimida. 

Marcha pelos direitos civis, em 1965,liderada por Martin Luther King Jr. (centro) Foto: AP

Ele também é um dos homens negros mais ativos socialmente em Selma. Tem um contato bastante amistoso com políticos locais, como George P. Evans, prefeito negro que substituiu o prefeito negro, que substituiu Jose Smitherman, que morreu em 2005. É amigo de figuras do establishment branco como Joseph Knight, de 82 anos, cujo avô foi prefeito de Selma durante a Guerra Civil e o presidente do Selma and Dallas County Center for Commerce, Wayne Vardaman, que deseja que cidade saiba como melhorar sua imagem, que parece hoje eternamente ligada aos eventos de 1965.

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“Memphis não comemora o assassinato a tiros do reverendo Martin Luther King”, disse Vardaman. “Mas Selma celebra o Domingo Sangrento.” Esse é um refrão comum num lugar onde as pessoas querem seguir em frente, mas com frequência não sabem como. O atual xerife do condado de Dallas, Harris Huffman, é um oficial branco de 61 anos com cabelos grisalhos e cavanhaque. Ele se preocupa que muitos moradores, brancos e negros, continuem fixados no passado. “Trato as pessoas da maneira como quero ser tratado”, disse ele. Mas acrescentou que “algumas pessoas em Selma vivem nos anos 60 e temos algumas que vivem em 1860”.

Mesmo em 2015 pode ser difícil dizer em que ano estamos. O Selma Country Club, onde assisti os membros vaiarem na televisão em 1965, ainda não tem sócios negros. A escola secundária de Selma tinha cerca de um terço de brancos durante o 25.º aniversário, hoje os alunos são todos negros e outros de cor. Há um cartaz do filme “Selma” na sala de recepção fora da sala do diretor, mas o Walton Theater de Selma está fechado.

É difícil olhar para Selma e não querer mais. A população hoje é de pouco menos de 20.000 e 80% são negros. A taxa de desemprego é superior a 10%, quase o dobro da média do Estado. O pano de fundo para o Jubileu este ano, com a revogação de alguns artigos da Lei de Direito ao Voto depois que uma decisão da Suprema Corte, em alguns aspectos não poderia ser mais triste.

Mas a vida segue pra frente e pra trás à sua própria maneira. Os Millers olham surpresos para o mundo há 25 anos, quando Betty sente que nem as mulheres negras nem as brancas a aceitariam e Randall pensa em Emmett Till “que eles espancaram e arrancaram um olho e o atiraram no Rio Tallahatchie porque tinha olhar insolente”. De algum modo eles progrediram, apesar de tudo.

Após nossa conversa, caminhamos pelo pátio e pelo terreno em torno da sua propriedade. Havia um fotógrafo comigo e tiramos diversas fotos que foram reveladas e enviadas a eles como presente de aniversário pelo Jubileu.

Em algumas fotos, Randall abraçava Betty e beijava-a gentilmente. Por um momento ele parou, para dizer, refletindo: “Sabe, se estivesse abraçando uma mulher branca aqui há 50 anos, eu poderia ter sido linchado”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

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