Sírios preferem voltar à guerra do que ficar em campo de refugiados na Jordânia

Campo de Zaatari é cenário de conflitos entre refugiados sírios e seus anfitriões jordanianos.

PUBLICIDADE

Por Sakhr Al-Makhadhi
Atualização:

JORDÂNIA - O campo de refugiados de Zaatari, no norte da Jordânia, deveria ser um refúgio para 30 mil sírios. Todos os dias, porém, dezenas estão escolhendo deixar a segurança da Jordânia e fazer a perigosa viagem de volta à zona de guerra na Síria. O sol se põe em Zaatari quando uma mãe pede a um soldado que a deixe subir em um ônibus. Perto dela, dezenas de sírios dão adeus enquanto o motor é ligado. Cerca de 360 mil sírios já fugiram de seu país, mas este ônibus lotado está fazendo o caminho de volta. "Nós encaramos uma morte lenta aqui, ou uma morte rápida lá", diz Hussain Ayish, apontando para a fronteira. Enquanto conversamos, um jato militar jordaniano e uma frota de helicópteros voam sobre nossas cabeças. Filas de caminhões, a maioria carregando água potável, passam pelo tanque jordaniano e seguem pela estrada lamacenta no coração do acampamento. Crianças correm atrás de cada veículo. "Esconda bem o seu carro", diz Bilal, um policial. "Eles não têm respeito algum. Vão jogar pedras em você." "E certifique-se de que você estará de volta antes do anoitecer", alerta. Conflitos Esse local de refúgio se transformou em cenário de uma batalha cada vez mais perigosa entre os refugiados sírios e seus anfitriões jordanianos. Em pelo menos uma ocasião, protestos dentro do campo acabaram em violência, provocando um êxodo de volta à Síria. Assim como muitos dos habitantes de Zaatari, a família Howshan vem de Deraa, local de nascimento da revolução síria, do outro lado da fronteira. Estou sentado na entrada de sua tenda. A lona é de um amarelo sujo. Do lado de fora, a família rabiscou seu nome com uma caneta. Eles ergueram uma barreira na entrada, em uma vã tentativa de manter a areia do lado de fora. Mas é inútil. A areia está por todo lado. Nos colchões de cor cinza nos cantos da tenda, nos cobertores, na água, na comida. Esta é minha segunda visita a sua casa temporária. O clima está bem mais pesado do que da última vez. "Lembra do meu filho?", pergunta Saeed Howshan. "Ele está no hospital agora". Enquanto seu primo, Ali, abre uma das caixas marrons com alimentação distribuída aos refugiados, ele reclama da "comida suja", mostrando um ovo podre que, diz ele, era para ser seu café da manhã. "Não importa o que façamos, os problemas continuam", diz Saeed, rodeado pelos sobrinhos."Nem mesmo os camelos vivem nesta terra. Eles estão nos tratando pior que os animais", diz, erguendo a voz. 'Agentes sírios' Neste momento, um voluntário jordaniano percebe a comoção e espia para dentro da tenda. "Eu espero que você não esteja dizendo nada contra o reino (da Jordânia)", diz. A conversa se transforma em uma discussão, com o jordaniano acusando os Howshans de mentir. O governo jordaniano insiste que as necessidades básicas dos refugiados são atendidas e afirma que apoiadores do regime sírio se infiltraram no campo para causar problemas. Um membro do alto escalão do governo diz que membros da milícia paramilitar síria shabiha, que apoia o regime de Bashar al-Assad, foram infiltrados entre os refugiados para repassar informações a Damasco. "Se encontrarmos algum", diz Ali, referindo-se aos agentes sírios, "nós os expulsaríamos". Mas ele nega que a violência seja provocada artificialmente. "Nós não aguentamos mais." As autoridades colocaram cascalho novo sobre a principal via que corta o campo. Enquanto caminhamos por ela, nos esquivando dos caminhões, Ali e seu irmão, Mohsen, mostram o local onde houve um confronto. "Aconteceu na semana passada", diz. "Eles fecharam a estrada principal, enviaram 300 policiais e nos atacaram com gás lacrimogêneo." Ali diz que o incidente começou como um protesto pacífico, após dois dias de, alega ele, comida intragável e falta de água potável. A Unicef (Fundo das Nações Unidas para Infância) diz que checa a qualidade da água duas vezes por dia. Hostilidade Há hostilidade dos dois lados. Policiais e soldados patrulham a área para garantir que ninguém entre ou saia. "Nós estamos vivendo em uma prisão", diz Saeed Howshan. "É como se fossemos prisioneiros dos jordanianos, é como se eles estivessem trabalhando com o regime sírio." O campo de Zaatari foi construído para abrigar sírios que cruzassem a fronteira ilegalmente. Muitos deles fugiram da zona de guerra com a ajuda do grupo rebelde Exército Livre da Síria e foram resgatados do outro lado da fronteira pelas forças jordanianas, que atuavam em coordenação com os rebeldes. Quando o conflito começou, os sírios - que podem entrar na Jordânia sem visto - foram abrigados nas cidades e receberam cuidados do governo. Mas com o aumento do volume de sírios cruzando a fronteira, a cidade de lona de Zaatari foi erguida no deserto e aberta em julho. O governo jordaniano estima que o país abrigue atualmente 200 mil refugiados, 15% deles no campo de Zaatari. Quando a noite cai sobre o campo, meu telefone toca. As autoridades dizem que eu já deveria ter saído do campo. Estou correndo perigo, eles insistem. Uma pequena multidão está reunida na área de banheiros, todos com o logo do Unicef. Esta noite, eles entoam palavras de ordem contra Assad, e não contra seus anfitriões jordanianos. Ali me leva até o portão, onde os soldados estão esperando por mim. "Estou sobrevivendo à base de suco e biscoitos", ele diz. "Me leve com você." Um soldado ordena que Ali volte para dentro. Como a maioria dos refugiados com quem conversei, Ali só pensa em escapar de Zaatari.

 

BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.