Soberania divide sociedade catalã

Separatismo da Catalunha é tema evitado em grupos de amigos, família e trabalho

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Por Jamil Chade e BARCELONA
5 min de leitura

BARCELONA - Na porta do estádio Camp Nou, no dia 26 de dezembro, o clima era de festa. Não por mais uma conquista do Barcelona, mas pelo jogo da seleção da Catalunha contra os rivais de Euskadi, o País Basco. Mais que uma partida de futebol, o evento era um ato político pela independência da região.

Pelas ruas, centenas de bandeiras da Catalunha e barracas onde os torcedores podiam pintar o rosto ou fazer um cartão de identidade catalão, substituindo o da Espanha. Dentro de campo, apenas jogadores nascidos na região, como Gerard Piqué. 

Com 17 minutos e 14 segundos, a arquibancada foi à loucura, como se fosse um gol do argentino Lionel Messi. Motivo: o instante marca simbolicamente o ano 1714, momento da derrota catalã para as tropas do rei Felipe V da Espanha e o enterro por 300 anos do sonho de um país soberano. A partir daquele minuto, os gritos de “independência” se repetiram.

Nesta quarta-feira, o jogo do Barcelona contra o Bate Borisov, pela Liga dos Campeões, foi marcado por um protesto barulhento de sua torcida Foto: Albert Gea/Reuters

Mas o aparente entusiasmo em relação ao futuro da região esconde uma divisão na população local, com um impacto nas famílias, empresas e grupos de amigos. Na Catalunha, milhares de pessoas são filhas e netas de “imigrantes” – população de andaluzes, galegos e outros locais mais pobres da Espanha que, depois da 2ª Guerra, buscaram oportunidades de trabalho em Barcelona. 

Nas eleições regionais de setembro, os independentistas, pela primeira vez, ficaram com a maioria no Parlamento Catalão e prometeram, para 2017, a separação da Espanha. O voto, porém, rachou a região. Em novembro, pesquisa da entidade CEO mostrou que 46,7% dos entrevistados eram favoráveis à independência. Contra eram 47,8%. 

Discussões. Entre amigos e famílias, o tema contaminou as relações. Jose Castro e Joan Bosch se conheciam há mais de 30 anos e lutaram juntos pela democracia na Espanha, ambos pelo Partido Comunista. Hoje, não se falam. 

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“O nacionalismo é uma invenção. Brigamos tanto que optei por não falar mais com ele”, acusa Castro, comerciante de Barcelona e filho de “imigrantes”. Bosch, professor aposentado, insiste que chegou o momento “de se livrar da Espanha”. “Seríamos um país estável e muito mais desenvolvido”. 

Entre parentes, muitas vezes a regra é não falar sobre o assunto para evitar crises. “Mas é como se tivéssemos um elefante na sala. Uma hora alguém nota, fala e a briga é certa”, contou Xavi Roca, universitário de Barcelona. 

O assunto também domina as entrevistas com as principais estrelas da Catalunha. O jogador de basquete Pau Gasol foi diplomático para evitar problemas. “Sinto-me espanhol e catalão. Mas espanhol acima de tudo. A Espanha é meu país”. No entanto, ele defendeu que haja uma votação para definir o destino da região. Já o tenor José Carreras admite que a separação, que era “uma utopia”, hoje está “bastante próxima”. “O país está muito decidido”.

Política. Para especialistas, a crise teve a contribuição de Mariano Rajoy, primeiro-ministro do Partido Popular, e do líder catalão Artur Más. O enfrentamento entre os dois começou em 2012, quando o governo central insistiu em cobrar a contribuição que a Catalunha deveria pagar ao Estado e repartir para as regiões mais pobres da Espanha. Vivendo sua pior crise econômica em 30 anos, Madri precisava arrecadar.   Más converteu as exigências de concessão fiscal em um movimento pela independência. Rajoy, em vez de abrir um diálogo, fechou os canais de comunicação e alertou que não aceitaria nem mesmo um referendo para a consulta da população. O resultado, para sociólogos, foi o fortalecimento do sentimento independentista diante da recusa de Madri em dialogar. 

Para a Associação Catalã de Sociologia, o processo aprofundou “o descontentamento e a indignação”. Somada à crise social, ao desemprego de mais de 20% e à corrupção, a separação entre Barcelona e Madri ganhou nova força. Para o sociólogo Jordi Estivill, o país não vive apenas uma “época de mudanças, mas uma mudança de épocas”. 

O tom é similar ao do historiador da Universidade Autónoma de Barcelona Borja de Riquer, em uma avaliação publicada em setembro. “Vivemos o momento histórico mais transcendente dos últimos 300 anos. Pela primeira vez na história do catalanismo, existe uma parcela importante da sociedade que quer a independência”.

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Para ele, hoje não é uma questão de pátria. “A realidade é que muitos catalães estão aderindo à ideia da separação por uma questão prática. O independentismo que aparece hoje não é ideológico, nem de identidade, nem nacionalista. É prático”, disse. Riquer admite, porém, que o processo será “difícil, tenso e com enfrentamentos que podem ser mito radicais”. 

Trabalho. Essa mesma tensão se repete dentro de empresas. Na televisão pública da Catalunha, a TV3, poucos ousam dizer que são contra a independência, enquanto a programação é elaborada para promover a ideia de um novo Estado europeu. “Eu estava na máquina de café e uma colega se aproximou e disse no meu ouvido: eu não sou independentista”, contou uma jornalista à reportagem na condição de anonimato. “As pessoas temem perder o trabalho ao serem classificadas como contrárias à Catalunha”, disse.

Os críticos alertam que os recursos públicos têm sido usados para promover a ideia da independência e não a de lidar com a crise social que afeta a Espanha há anos. Um dos exemplos desses gastos é o reforço da presença do idioma catalão. Em 2015, 59 filmes foram dublados na língua da região, usando recursos estatais. Para 2016, a lista tem filmes como Macbeth, além de uma estratégia para aumentar as ofertas em DVD. 

Ao Estado, a direção de Comunicação do governo catalão evitou usar o castelhano para falar com a reportagem e as respostas foram dadas em inglês. José Martin, professor de uma escola primária no centro de Barcelona, também se preocupa com o futuro de seus alunos. “Pela lei, hoje, eles têm apenas duas horas de aulas em espanhol por semana. Isso é muito pouco”. 

Olga Gomez, que leciona para crianças de até 7 anos numa escola da periferia da capital, resolveu “ignorar as regras de apenas falar catalão com os alunos”. “O que você faz com os filhos de imigrantes pobres cujos pais mal falam espanhol?” 

Entre os empresários, a divisão também é profunda. Em setembro, cerca de 500 empresários se reuniram para anunciar apoio ao projeto de que os cidadãos catalães possam ter o direito de ser consultados em um referendo. Mas nem todo o setor privado catalão está satisfeito. 

Para o presidente da entidade Empresarios de Cataluña, Josep Bou, mais de mil empresas já deixaram a região desde o início do processo separatista, temendo que suas sedes fiquem fora da UE ou sejam prejudicadas por eventuais boicotes contra produtos catalães. “Não quero nem pensar o que seria a independência”, disse. 

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Pressão econômica. No restante da Espanha, uma série de sites e grupos em redes sociais promovem um boicote a produtos catalães. Num deles, o lema é claro: “Faça uma compra responsável e não permita que os nacionalistas usem seu dinheiro para fomentar o ódio”. 

Em feiras por toda a Espanha, pequenos e médios empresários confessaram ao Estado que têm evitado usar o nome “Catalunha” em seus espaços. Numa nota a investidores, a agência Moody’s indicou que todos perderiam com a separação da Catalunha, tanto na região como na Espanha.

No Camp Nou, no último dia 26, porém, a ordem era a de torcer pela independência. Nem a derrota por 1 a 0 do time da casa para a seleção basca parecia um problema. “Pior seria perder para a Espanha”, riu um torcedor ao deixar o estádio.

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