Sorveteria venezuelana com número recorde de sabores fecha por falta de leite e açúcar

Inaugurada em 1981 em Mérida, a Coromoto chegou a ter mais de 860 opções disponíveis para seus clientes e era atração turística da cidade; escassez de insumos e inflação descontrolada no país inviabilizaram continuidade do negócio

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MÉRIDA, VENEZUELA - Manuel da Silva teve a estranha ideia de vender sorvetes de alho, feijão ou polvo. O negócio deu certo e ele entrou no livro dos recordes - o Guinness Book - por oferecer mais de 800 sabores, mas em razão da severa escassez vivida na Venezuela os clientes já não podem mais experimentar as criações de Silva.

A falta de leite e açúcar obrigou o comerciante de origem portuguesa, que hoje tem 86 anos, a fechar as portas no começo deste mês da sorveteria Coromoto, inaugurada em 1981 e convertida em um dos ícones da cidade andina de Mérida.

Placas na parede da sorveteria Coromoto com os nomes das centenas de sabores oferecidos no local Foto: Claire Taylor/Wikipedia

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"Nos esforçamos, aguentamos o quanto pudemos, mas chegou o momento em que não foi mais possível resistir", disse José Ramírez, genro de Silva e encarregado da sorveteria há duas décadas.

"Passamos anos sofrendo com o problema da escassez, nos abastecendo no mercado negro. Não conseguimos produtos com nossos fornecedores tradicionais. Aparece um vendedor e compramos algum produto, mas a situação ficou muito complicada este ano", explicou.

Quando foi inaugurada, a sorveteria Coromoto se limitava a oferecer quatro sabores tradicionais: baunilha, morango, chocolate e coco. Um dia, Silva teve a ideia de fazer um sorvete de abacate. Deu certo. "E ele começo a inventar, a experimentar receitas com carne, peixes, ostras, alho, cebola", contou Ramírez.

A sorveteria entrou no Guinness em 1991, com 168 sabores, e revalidou a marca em 1996, quando já oferecia 591 opções aos seus clientes. A lista cresceu ainda mais à medida que Silva criava novos sorvetes e chegou a ter mais de 860 opções entre sabores clássicos e outros extravagantes, como feijão preto, pimenta, beterraba, tripa, entre outros.

Todos tinham ao menos um toque doce. "A gente vinha para experimentar coisas raras", lembrou com um sorriso no rosto Luis Márquez, um jovem que costumava frequentar a sorveteria.

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O estabelecimento se transformou em ponto turístico de Mérida - onde está localizado o teleférico mais alto do mundo, a 4.765 metros acima do nível do mar - e figurava no guia turístico da Lonely Planet.

"É uma sorveteria com tradição de muitos anos para os turistas. Dá tristeza", declarou Mina Pérez na frente das portas de madeiras fechadas da casa de paredes amarelas que abrigava o negócio.

Sabor amargo

A queda dos preços do petróleo desde 2014 fez a crise disparar e os venezuelanos serem afetados pela constante falta de produtos de primeira necessidade e a inflação mais alta do mundo, cuja projeção do FMI aponta que terminará 2017 em 720%, podendo passar de 2.000% em 2018.

"Mantivemos os preços acessíveis, mas tomar um sorvete passou a ser um luxo para muitas pessoas", reconheceu Ramírez, explicando que as vendas da sorveteria Coromoto despencaram entre a metade de 2015 e 2016.

Esta tendência, explica, se manteve em 2017. No ano passado, o negócio ficou fechado por três meses, mas conseguiu reabrir. "Antes, na alta temporada, a sorveteria era uma loucura, cheia. Mas, estes tempos acabaram", diz o administrador de 56 anos.

Clientes fazem fila para comprar sorvete na Coromoto, em 2008; local oferecia sabores exóticos, como feijão preto, pimenta, beterraba, tripa, entre outros Foto: Reindertot/Wikipedia

Na Coromoto, um copo com duas bolas de sorvete custava 5.000 bolívares (US$ 1,5, no câmbio oficial). Em Caracas, um sorvete do mesmo tipo custa cinco vezes mais.

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O salário mínimo na Venezuela chegou a 136.543 bolívares (US$ 40 dólares na taxa oficial), depois de um aumento de 40% decretado nesta semana pelo presidente Nicolás Maduro. A este valor, também é acrescido um bônus de alimentação de 189.000 bolívares (US$ 56).

Para Ramírez, o negócio deixaria de ser rentável se eles aumentassem os preços porque os clientes não teriam mais condições de frequentar a sorveteria. Um casal, com dois filhos, por exemplo, teria que gastar quase 20% do salário mínimo para que cada um pudesse tomar um sorvete. 

A crise também afeta Ramírez em casa. Ele sofre de depressão e não tem conseguido os remédios que deveria tomar. Um de seus filhos, fugindo de problemas econômicos, migrou para o Chile. Sua esperança está no futuro da sorveteria: "Espero que possamos voltar a abrir". / AFP

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