Suíça vendeu armas ao Brasil na época da ditadura

Governo autorizou exportações de material bélico para o regime militar, mesmo sabendo das violações aos direitos humanos cometidas no País

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Por Jamil Chade e BERNA
Atualização:

BERNA - Sem abrir mão de sua tradicional posição de neutralidade no cenário internacional, o governo da Suíça autorizou a venda de material de guerra ao regime militar brasileiro, mesmo sabendo das violações de direitos humanos cometidas pelas autoridades. A admissão está em documentos obtidos pelo Estado nos arquivos diplomáticos suíços.

Os papéis revelam que a cúpula do governo em Berna debatia internamente a conveniência de fornecer esse material ao Brasil e admitia que determinadas vendas poderiam ter um impacto negativo para sua imagem. Mesmo assim, o país manteve o negócio. 

Polícia se movimenta na rua Conde de Baependi, bairro de Laranjeiras, Rio, londe embaixador suíço foi sequestrado durante a Ditadura Militar Foto: Arquivo / Estadão

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Durante o regime militar, o Brasil não estava sob embargo da ONU e as vendas de armas para o regime eram autorizadas por diversos governos. Mas, especialmente na Europa, a opinião pública era contrária a qualquer tipo de relacionamento militar com os generais. 

Em 1977, os presidentes Ernesto Geisel e Jimmy Carter romperam o acordo militar que existia entre Brasil e EUA. O País não mais receberia armas e ajuda técnica dos americanos. A crise com Washington se agravou depois que o novo presidente dos EUA autorizou a divulgação de um relatório que revelava como o regime brasileiro estava envolvido em atos de tortura, assassinatos e repressão contra estudantes e movimentos sociais. 

No caso suíço, as preocupações internas do governo em Berna sobre os direitos humanos no Brasil eram consideradas insuficientes para cancelar a autorização do envio de armas. Um dos primeiros alertas foi emitido ainda em 30 de outubro de 1968. Numa carta ao Conselheiro Federal e chanceler Willy Spuehler, o então embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Bucher, destacava as ações de movimentos estudantis e dizia que os confrontos com as forças de ordem estariam causando “preocupações”. No dia 15 de março daquele mesmo ano, o Poder Executivo suíço responderia favoravelmente às vendas. “As exportações de material de guerra ao Brasil estão aprovadas”, declarou o governo. 

Num informe de 28 de agosto de 1972, elaborado por um grupo interministerial, a situação brasileira é analisada ao lado de países como Egito, Irã e Chile. O documento revela que a empresa suíça Crypto apresentou um pedido de autorização de exportação de armas no valor de 633 mil francos suíços, destinados à Marinha brasileira. O informe revela que, em 1971 e 1972, o governo em Berna permitiu a exportação de mais de 200 peças de armamento no valor de mais de 1 milhão de francos suíços (US$ 250 mil na época). Ao descrever o Brasil, as autoridades suíças indicaram que o país vivia uma “situação estável sob um governo autoritário”. 

Num telegrama interno de 23 de janeiro de 1974, o diplomata J. Forster escreveu para a Direção Política da Chancelaria para pedir que o governo fosse “muito prudente quanto à exportação de armas ao Brasil que possam causar reações fortes em alguns setores da opinião pública, dadas as violações ao respeito da dignidade humana praticada pelas autoridades brasileiras”. Sua avaliação era de que a entrega de material militar poderia até mesmo comprometer investimentos nas regiões mais pobres do Brasil.

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Em um outro documento, de 20 de fevereiro de 1974, o Departamento Militar Federal pedia ao Executivo suíço uma avaliação sobre a solicitação da empresa Oerlikon-Buhrle para vender material bélico ao Brasil. O interesse era vender 6 mil granadas em três anos aos militares brasileiros, em um negócio que poderia render um total de quase 4 milhões de francos suíços, valor equivalente, na época, a US$ 1 milhão. Outra empresa, a Mowag, pediu autorização para vender material e peças para blindados do Exército. 

No documento, o Departamento Militar admite que existia no Brasil “uma certa tensão de natureza econômica, social e política”. Os militares suíços apontavam que não se poderia falar de uma “violação sistemática dos direitos humanos no Brasil”. Mas destacavam: “A oposição política está sendo duramente reprimida e a tortura é evidente nas prisões brasileiras”.

Os documentos dos arquivos suíços revelam que a opção por vender armas aos militares brasileiros foi tomada mesmo sabendo que o regime usava a tortura como prática recorrente e as liberdades civis da população estavam sendo ameaçadas. 

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As vendas ao regime militar brasileiro não ocorreram de forma isolada. A partir dos anos 60, uma série de polêmicas surgiu na Suíça diante do fornecimento de armas para governos autoritários. Numa delas, em 1968, aviões do Comitê Internacional da Cruz Vermelha foram atingidos por mísseis durante a guerra civil na Nigéria. Os mísseis foram produzidos na Suíça, por uma empresa que abasteceu o governo sul-africano, sob o regime do apartheid. 

Um estudo do governo de Berna sobre o papel da Suíça na 2.ª Guerra concluiu que as empresas de armamentos da Suíça “violaram de forma repetida as leis de neutralidade do país” e obtiveram “lucros exorbitantes”. Com o final da guerra, em 1945, o governo suíço decidiu suspender qualquer venda de armas. Mas a medida foi revertida em 1949.

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