A vingança de Erdogan

Presidente da Turquia está destruindo a democracia em cuja defesa os turcos arriscaram suas vidas

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Por The Economist
Atualização:

Ainda pairam muitas dúvidas sobre a tentativa de golpe que os militares empreenderam na Turquia, na noite do dia 15. Por que a coisa foi tão atabalhoada? Qual o grau de envolvimento da cúpula militar? Eram golpistas à moda antiga, movidos por ideias seculares, como indica seu comunicado inicial; ou seriam seguidores do clérigo Fethullah Gulen, atualmente exilado nos EUA, como alega o governo?

Mas duas coisas estão claras. A primeira é que o povo turco demonstrou coragem e destemor ao sair às ruas e enfrentar os soldados: 145 civis perderam a vida. Os partidos de oposição deixaram de lado sua aversão ao presidente Recep Tayyip Erdogan e se uniram para condenar o ataque à democracia. Antes a convivência difícil com um líder de tendências autoritárias e inclinação islamista do que o retorno dos generais pela quinta vez desde a década de 60.

Milhares de turcos vão às ruas manifestar seu apoio ao presidente Recep Tayyip Erdogan Foto: AFP PHOTO / UMIT TURHAN COSKUN

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A segunda conclusão, bem mais preocupante, é que essa mesma democracia, cuja defesa custou a vida de tantos turcos, está sendo solapada a galope por Erdogan. Na quarta-feira, o presidente decretou estado de emergência por três meses no país. Cerca de 6 mil soldados foram presos; um número ainda maior de policiais, promotores e juízes foi exonerado ou suspenso de suas funções. O mesmo aconteceu com acadêmicos, professores e servidores públicos civis, muito embora não existam indícios de seu envolvimento no “putsch”. Nas ruas, secularistas, curdos e outras minorias sentem-se intimidados pelos defensores de Erdogan.

O expurgo é tão amplo e profundo – pelo menos 60 mil pessoas foram afetadas – que alguns o comparam à desastrosa política de desbaathificação adotada pelos americanos no Iraque (quando todos os funcionários públicos, civis e militares, filiados ao Partido Baath do ex-ditador Saddam Hussein foram removidos de seus cargos e proibidos de voltar a trabalhar no setor público). A medida vai muito além do que seria necessário para garantir a segurança do Estado turco. Colocando divergência e traição no mesmo saco, Erdogan executa o próprio golpe contra o pluralismo. Com a liberdade de ação que o estado de emergência lhe confere, o presidente acabará acirrando os conflitos internos e levando o país ao caos, um desdobramento que pode representar séria ameaça aos países vizinhos, à Europa e ao Ocidente.

Mais um terremoto. É bem possível que a tentativa de golpe venha a ser vista como o terceiro choque a abalar as bases da ordem europeia pós-1989 em curto intervalo de tempo. Em 2014, a anexação da Crimeia pela Rússia e a subsequente invasão que os russos promoveram no leste da Ucrânia lançaram por terra a ideia de que as fronteiras da Europa estavam estabilizadas e a Guerra Fria chegara ao fim. No mês passado, a vitória do Brexit no referendo realizado pelo Reino Unido deixou em frangalhos a noção de que a União Europeia (UE) caminhava para uma integração progressiva e sem volta. Agora o “putsch” turco, e a reação a ele, levanta indagações perturbadoras sobre a reversibilidade da democracia no mundo ocidental – de que a Turquia, ainda que em posição periférica, a certa altura parecia destinada a fazer parte.

As consequências para a Otan, aliança militar que serve de escora para as democracias europeias, podem ser desestabilizadoras. Sem provas, ministros do governo Erdogan responsabilizam os EUA pelo golpe e exigem que os americanos extraditem Gulen – que vive na Pensilvânia –, sob pena de, se não o fizerem, ver a Turquia dar as costas para o Ocidente. A base militar de Incirlik, que serve de centro para as operações aéreas contra o Estado Islâmico (EI), executadas sob a coordenação dos EUA, teve seu fornecimento de energia temporariamente cortado após a tentativa de golpe. Se a Turquia não pertencesse à Otan e quisesse ingressar na aliança hoje, talvez fosse barrada por não atender aos critérios que condicionam a admissão de novos membros; mas a aliança não dispõe de mecanismos para expulsar um país-membro que tenha deixado de cumprir esses requerimentos.

Com a segunda maior força militar da Otan, a Turquia é, desde os anos 50, um bastião avançado do Ocidente, funcionando inicialmente como barreira contra o totalitarismo soviético e, depois, contra o caos do Oriente Médio. Quando o Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Erdogan, chegou ao poder, o país se tornou um modelo de democracia muçulmana próspera e estável. Foram iniciadas negociações de paz com a minoria curda e aplicadas reformas que impulsionaram o crescimento econômico. Em 2005, a UE se dispôs a negociar a entrada da Turquia no bloco. Mas, depois de uma onda de manifestações contra um plano de reurbanização do Parque Gezi, em Istambul, a que se seguiu um escândalo de corrupção, Erdogan passou a assumir posições cada vez mais autocráticas. Seu governo deteve jornalistas, promoveu uma caça às bruxas no Exército e intimidou o Judiciário, tudo em nome de erradicar o “Estado paralelo” que, segundo o presidente turco, teria sido organizado pelos seguidores de Gulen. 

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Na esperança de acelerar a queda do presidente da Síria, Bashar Assad, Erdogan fechou os olhos para a passagem de jihadistas pela Turquia. Agora quer uma nova Constituição, que o transforme numa espécie de presidente executivo, embora ele já concentre poderes de sobra. Para conseguir isso, deixou de lado toda cautela, em especial permitindo que as negociações de paz com os curdos entrassem em colapso. A consequência é que a Turquia se vê às voltas com um levante duplo: dos curdos e dos jihadistas.

Autocratas somos nós. Se a reação à tentativa de golpe fosse conduzida com mais inteligência e moderação, poderia significar o fim definitivo das quarteladas turcas. Erdogan emergiria da crise como o unificador magnânimo de uma nação dividida, retirando a mordaça que constrange a imprensa, retomando o processo de paz com os curdos e contribuindo para a construção de instituições sólidas e independentes. Em vez disso, o presidente turco vem dando vazão a uma intolerância paranoica, agindo mais como os tiranos árabes que ele diz detestar do que como o estadista democrata em que poderia ter se transformado.

É verdade que o AKP venceu todas as eleições desde 2002, mas Erdogan tem um entendimento nitidamente “majoritário” da democracia: apesar de ter sido eleito com os votos de não muito mais que metade dos turcos, acha que pode fazer o que bem entender. Caberá principalmente aos próprios turcos conter o presidente, resistindo pacificamente a suas tentativas de concentrar mais poder e apoiando seus adversários nas urnas.

Os aliados ocidentais da Turquia precisam chamar Erdogan à razão, instando-o a respeitar a lei e agir de forma mais desapaixonada. Mas, e se ele não lhes der ouvidos? A Turquia ocupa posição estratégica na guerra contra o EI. Domina as vias de acesso ao sudeste europeu, controlando tudo o que passa por ali, de gás natural a refugiados sírios. A Europa não tem como mudar a geografia da região, mas pode se colocar numa posição menos vulnerável, começando pela instalação de um sistema de controle de fronteiras digno do nome e pelo processamento adequado dos pedidos de asilo. E, ainda que Erdogan tenha muitas cartas na mão, não é imune a pressões. Pouco antes do golpe, reatou relações com Israel e Rússia.

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O maior triunfo de Erdogan – a economia – tornou-se seu ponto fraco. Com a instabilidade política e os atentados afugentando os turistas, o déficit em conta corrente do país só fará aumentar. Para que a economia volte a crescer com vigor, serão necessários investimentos e empréstimos estrangeiros. Mas, com Erdogan se comportando como um sultão vingativo, será difícil convencer o restante do mundo de que é seguro pôr dinheiro na Turquia.

As reverberações do “putsch” serão sentidas por muito tempo. Os golpistas mataram muitos compatriotas, desacreditaram o Exército, limitaram sua capacidade de proteger a fronteira e combater os terroristas, exasperaram os aliados do país na Otan e contribuíram para remover os freios que ainda continham os desatinos de um presidente autocrata. É um preço excessivamente alto a pagar por uma noitada de embriaguez pelo poder. ] © 2016 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. TRADUZIDO POR ALEXANDRE HUBNER, PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM.   

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