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Trump e o trabalho de Deus

Por Thomas Friedman (The New York Times)
Atualização:

Como muitos outros, vi o vídeo exibido pelo presidente americano, Barack Obama, no jantar dos correspondentes da Casa Branca, sábado, no qual ele pede conselho ao ex-presidente da Câmara John Boehner sobre o que fazer na pós-presidência. Foi notável ver o verdadeiro Boehner e o verdadeiro Obama atuando como melhores amigos. Boehner chegou a dizer a Obama que finalmente fizera "um grande negócio" - mas foi com um carro Chevy Tahoe, não aquele que eles tentaram fazer na economia. 

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Assisti ao vídeo com Chuck Todd, apresentador de Meet the Press, e sua reação foi exatamente a mesma que tive: "Onde estava esse amor fraternal quando os Estados Unidos precisavam dele" para um verdadeiro grande negócio?

Aquela cena fez soar o mais profundo acorde emocional do país de hoje: a incessante luta entre dois partidos políticos que deixou muitos americanos se sentindo como filhos de pais permanentemente se divorciando. O país anseia por ver seus dois maiores partidos fazerem de novo grandes coisas juntos. E a visão - mesmo de faz de conta - de Obama e Boehner agindo juntos nos lembrou de quanto perdemos.  Acho que o que impulsiona o sucesso de Donald Trump, mais que qualquer outra coisa, é aquilo que muitos americanos sentem: a paralisia total da nossa política. 

Há um sentimento unânime de paralisia, e a fantasia que Trump encena para o público e procura ressaltar é a de que conseguirá tirar a espada da pedra e fazer acordos. Mas ninguém foi mais responsável por essa paralisia do que o Partido Republicano atual. Quando em 2010 Mitch McConnell, líder republicano no Senado, afirmou que "a única e mais importante coisa que almejamos é que o presidente Obama seja um presidente de um só mandato", ele descreveu a estratégia de dominação dos republicanos desde 2008. O partido parou de pensar seriamente sobre alternativas com base no mercado. E Trump se introduziu nesse vazio como uma espécie invasiva.

Foi realmente um período ruim que deixou os EUA paralisados. Estou terminando de escrever um novo livro em que analiso um momento decisivo de mudanças que atingimos em torno de 2007. Nesse ano a Apple lançou o iPhone, dando início à revolução dos aplicativos e do smartphone; no final de 2006 o Facebook abriu suas portas para todos, não só para alunos de faculdades e escolas secundárias, decolando como um foguete; o Google lançou seu sistema operacional Android em 2007; o Hadoop foi criado em 2007, gerando a potência de processamento e armazenamento para a revolução dos megadados; o Github, lançado em 2007 mudou a escala do software de fonte aberta; o Twitter foi desmembrado e transformado numa plataforma separada em 2007. A Amazon lançou o Kindle em 2007. O Airbnb começou a operar em 2007.

Em resumo, às vésperas da presidência de Barack Obama, algo muito importante sucedeu: tudo começou a ficar digitalizado e feito por meio de telefones celulares - trabalho, comércio, faturamento, finanças, educação -, transformando toda a economia. Muita coisa começou a acontecer de modo muito rápido e ao mesmo tempo. Foi exatamente quando precisávamos dobrar a aposta em nossa fórmula de sucesso e atualizá-la para uma nova era - mais oportunidades de aprendizado constante para todo trabalhador, melhor infraestrutura (estradas, aeroportos, ferrovias e largura de banda) para promover o fluxo de comércio, melhores regulamentos para estimular a coragem de assumir riscos e evitar atos imprudentes, melhores políticas de imigração para atrair as cabeças mais inteligentes do mundo e mais pesquisas financiadas pelo governo para estender as fronteiras da ciência e lançar as sementes para a próxima geração de startups.

Esse era realmente o grande pacto de que precisávamos. Ao contrário, o que aconteceu foi o derretimento econômico de 2008, que desencadeou uma maior polarização, e excessivos bloqueios, considerando-se quanto teríamos de repensar, reimaginar e reformular. Nesse tumulto, grande parte do público ficou desorientada e sem rumo, abrindo as portas para os populistas dotados de respostas simples. Vamos nos livrar dos imigrantes, acabar com o comércio com a China ou eliminar os grandes bancos e tudo estará resolvido. Absurdo!

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Os EUA se fortaleceram graças à democracia e ao capitalismo. Enriqueceram por meio do comércio. Como país, se tornaram inteligentes e poderosos graças à imigração. Como país, se tornaram mais justos com a Seguridade Social, o Medicare e o Obamacare. Tudo isso implica haver um número muito maior de vencedores do que de fracassados. Não é este o momento de perder a confiança em tudo o que nos trouxe até aqui. Se você está concorrendo à presidência, e não está a favor de todas essas coisas, está errado - e espero que perca.

Mas se defende essas coisas somente porque agora elas existem, também está errado. Cada uma delas precisa ser reformulada. É claro que o livre comércio com a China afetou mais gente do que se imaginava inicialmente. É claro que a imigração ilegal de pessoas pouco especializadas afetou mais trabalhadores americanos do que se pôde compreender (e mais imigrantes altamente especializados numa era do conhecimento contribuiria para fortalecer nossa economia mais do que a maioria das pessoas tem condições de entender). É claro que a Seguridade Social, o Medicare e o Obamacare precisam de correções para continuarem sustentáveis. É claro que o capitalismo impulsionado mais por máquinas e robôs traz novos desafios para os trabalhadores dos setores administrativos e para os operários.

Cada um desses desafios poderá ser enfrentado se pusermos nossas cabeças e mãos para trabalhar juntas. Entretanto, para que isso aconteça essa versão do Partido Republicano precisa ser eliminada, para que possa surgir um partido de centro-direita capaz de pensar. Se foi isso que Trump fez, ele fez o trabalho de Deus. Entretanto, é preciso também que os democratas sejam um partido de centro-esquerda, e não deixem que Bernie Sanders os empurre para a extrema esquerda. Se essas duas coisas acontecerem, talvez algo de bom possa realmente surgir desta louca eleição. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ, TEREZINHA MARTINO E ANNA CAPOVILLA