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Uma polarização perigosa nos EUA

Nas últimas décadas as pessoas começaram a se definir politicamente não mais com base nas questões econômicas tradicionais, mas na identidade – gênero, raça, etnia, orientação sexual

Por Fareed Zakaria
Atualização:

O ataque a tiros durante um treino de beisebol de congressistas republicanos, há uma semana, foi um exemplo terrível da polarização política que vem dilacerando os EUA. Cientistas políticos têm mostrado que o Congresso está mais dividido do que nunca desde o fim da Reconstrução.

Estou surpreso não só com o fanatismo partidário nos dias de hoje, mas cada vez mais com seu caráter. As pessoas do outro lado da divisão não estão apenas erradas e devem ser contestadas; elas são consideradas imorais e têm de ser silenciadas ou punidas.

Donald Trump, presidente dos EUA Foto: AP Photo/Andrew Harnik

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Isto não tem nada a ver com política. O fosso separando esquerda e direita durante grande parte da Guerra Fria era muito maior do que hoje em determinados assuntos. Muita gente da esquerda queria nacionalizar ou controlar setores inteiros da indústria; à direita, seus partidários defendiam abertamente a total revogação do New Deal. Comparado a isso, as divisões econômicas atuais parecem relativamente pequenas.

Hoje, o partidarismo tem mais a ver com identidade. Segundo os estudiosos Ronald Inglehart e Pippa Norris, nas últimas décadas as pessoas começaram a se definir politicamente não mais com base nas questões econômicas tradicionais, mas na identidade – gênero, raça, etnia, orientação sexual. Acrescentaria a isso uma classe social mista, algo raramente citado nos EUA, mas um determinante poderoso de como nos enxergamos. A eleição de 2016 teve muito a ver com classe social, com eleitores das zonas rurais sem nenhum curso superior reagindo contra uma elite urbana, profissional. 

O aspecto perigoso desta nova forma de política é que a identidade não se presta facilmente ao compromisso. Quando a divisão era econômica sempre era possível eliminar as diferenças. Se um indivíduo desejasse gastar US$ 100 bilhões e outro defendesse zero de gastos, chegava-se a um meio-termo. O mesmo ocorria com os cortes de impostos ou com relação à política social e previdenciária.

Mas se assuntos importantes têm a ver com identidade, cultura e religião (caso do aborto, direitos dos gays, monumentos da Confederação, imigração, línguas oficiais), então qualquer compromisso parece imoral. A política americana vem se assemelhando mais à política do Oriente Médio, onde não existe meio-termo entre sunitas e xiitas.

Reações. Tenho observado esta mudança nas reações a meus artigos, e, mais recentemente, ao meu programa na TV. Quando comecei a escrever minha coluna, há duas décadas, os desacordos eram quase sempre mordazes, mas na maior parte tinham relação com o conteúdo da matéria. Hoje, cada vez menos se discute o conteúdo e, com frequência, os ataques são pessoais, envolvendo raça, religião e etnia. 

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Hoje tudo é combustível para insuflar o partidarismo. Veja o caso da agora famosa peça Julius Cesar, no Public Theater, em Central Park, em que Júlio César se assemelha a Donald Trump.

Os conservadores criticaram acerbamente a peça, despertando a indignação das pessoas que não a assistiram, afirmando que ela glorifica o assassinato e estão tentando cortar o financiamento da produção. Quando, pelo Twitter, elogiei a peça, recebi uma saraivada de ataques, muitos deles repugnantes. Em 2012, uma produção da mesma peça tinha um César parecido com Barack Obama assassinado todas as noites e ninguém reclamou. 

Na verdade, a mensagem central da peça é que o assassinato de César foi um desastre, provocou uma guerra civil, anarquia e a queda da república romana. Os assassinos foram derrotados e degradados, e, dilacerados pela culpa, tiveram morte horrível. Se não estava claro o bastante, o diretor da peça, Oskar Eutis, explicou a mensagem que queria passar: “Júlio César pode ser entendido como uma parábola de advertência para aqueles que tentam defender a democracia por meios não democráticos. 

O teatro político é tão antigo quanto a civilização. Uma peça de Shakespeare, que na verdade apresenta César (Trump) sob uma perspectiva ambivalente, de certo modo favorável – deve ser debatida, não censurada, e certamente não responsabilizada pelas ações de um atirador transtornado.

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Recentemente proferi um discurso na Bucknell University em que critiquei universidades liberais dos EUA por calarem opiniões que qualificam como ofensivas, argumentando que são prejudiciais para os estudantes e o país. O mesmo vale para os conservadores que tentam fazer campanha para retirar o financiamento de arte que eles consideram ofensiva. 

Querem agora que Central Park seja o próprio espaço seguro particular? Insisto em afirmar que conservadores e liberais precisam se abrir a todas as opiniões e ideias que diferem das suas. Em vez de procurarmos silenciar, banir e punir, vamos olhar para o outro lado e procurar ouvir, entender e, se for o caso, discordar. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO  É COLUNISTA

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