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Música barroca segue viva na selva boliviana

Um povo indígena da Bolívia ainda toca a música trazida no século 18

Por Nicholas Casey
Atualização:

CONCEPCIÓN, Bolívia - A antiga partitura musical era de leitura difícil. Tratava-se de uma cópia de uma Missa do compositor Domenico Zipoli do século 18 que atravessou o Atlântico e a maior parte da América do Sul, e permaneceu enfiada em uma caixa por três séculos em uma igreja perdida na selva, onde a umidade fez consideráveis estragos.

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Embora grande parte da obra de Zipoli tenha desaparecido na Europa onde ele nasceu, ela sobreviveu no leste da Bolívia - juntamente com sua vasta tradição musical barroca. Aqui, cravos e alaúdes se encontram nas menores aldeias. Os luthiers entalham violinos dos cedros locais há séculos.

Preciosas coletâneas de antigos manuscritos, redescobertos recentemente em arquivos de igrejas, emprestaram uma nova vida a Zipoli e a outros compositores do período, cuja música é tocada em escolas e nas rádios.

“O barroco é a nossa tradição aqui”, disse Juan Vaca, arquivista de Concepción, folheando as páginas corroídas da Missa de Zipoli com um par de luvas e um bastãozinho.

A partitura é um legado dos missionários jesuítas que deixaram uma cápsula do tempo na Bolívia. Nos anos 1700, partes do atual Paraguai, da Bolívia oriental e do sul do Brasil eram cobertas por enormes florestas habitadas por populações indígenas seminômades que eram caçadas pelos comerciantes de escravos. Ao redor da selva estendiam-se os impérios espanhol e português.

Os jesuítas tinham dois objetivos: converter as tribos indígenas e protegê-las da escravidão. Ao longo dos anos, eles criaram um estado dentro do estado, governado por sacerdotes e chefestribais.

Esta obscura região atraiu por um breve momento os holofotes de Hollywood com o filme “Missão”, de 1986, estrelado por Robert De Niro.

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“A história falava da construção de uma sociedade diferente, uma espécie de utopia com educação para todos e sustentabilidade - e, evidentemente, com a música, com a qual os jesuítas costumavam evangelizar”, disse o reverendo Piotr Nawrot, um sacerdote católico que vive na Polônia e que trabalhou na recuperação de alguns dos manuscritos.

Acima de tudo, a atuação da Igreja católica na região foi pouco clara: ela concordou em forçar os grupos indígenas a saírem das missões que haviam construído a fim de favorecer a solução de uma disputa territorial entre Espanha e Portugal. Recusando-se a partir, alguns indígenas travaram uma guerra sangrenta, e muitas das igrejas foram abandonadas, caindo em ruínas.

Mas nas planícies bolivianas, o legado da música barroca sobreviveu - inclusive, séculos depois de as comunidades indígenas perderem a tradição de ler música, aprendendo as canções de ouvido.

Um povo indígena da Bolívia ainda toca a música trazida no século 18 (Lena Mucha/The New York Times) Foto: Lena Mucha para The New York Times

Urubichá é uma aldeia rural a noroeste de Concepción, no fim de uma estrada de terra que ladeia um pântano atravessado por dez pontes.

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A cidadezinha de 8 mil almas tem uma escola de música com 500 alunos, praticamente todas as crianças do lugar. Na hora do almoço, elas perambulam pela praça da aldeia carregando os estojos com os instrumentos. Elas falam o guarayo, a língua nativa. “O guarayo vive com esta música em suas almas”, disse Leidy Campos, 32, que ensina música. “As pessoas dizem que nasceram com um violino na mão”.

Ideberto Armoye, que ensina carpintaria, nos recebeu em uma oficina onde se produzem violas e violinos com o cedro e o mogno locais. Estas são as únicas madeiras que conseguem resistir ao calor tropical, explicou.

Para provar o que estava dizendo, pegou um violino da China. “Acontece de tudo com este instrumento, olhe esta enorme rachadura”, mostrou.

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A música tem admiradores muito além destes lugares. Um deles é Ashley Solomon, professor do Royal College of Music de Londres, que foi até Santa Cruz, na Bolívia, em abril para dirigir um festival de música barroca.

“Eles pegaram esta música e se apropriaram dela - ela é mais vibrante, mais positiva”, afirmou. “A música eleva a alma, mais do que a autoflagelação”.

Solomon lembrou que anos atrás deu um concerto em San Javier, a oeste de Concepción.

Quando o seu grupo começou a tocar umconcerto para flauta do século 18, “Pastoreta Ychepe Flauta”, ficou maravilhado, contou, ao ouvir pessoas que conheciam a peça cantarolando a música também.

“Poderíamos tocar as ‘Quatro Estações’ de Vivaldi em Londres e ninguém cantaria com a orquestra”, disse Solomon. “Mas na Bolívia, as pessoas dominam a música - e penetram na própria essência dela”.

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