Nomeação de uma mulher para o comando da CIA não agrada feministas

A mulher que o presidente dos EUA, Donald Trump, escolheu para liderar a CIA já supervisionou casos de tortura

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Por Mona Eltahawy
Atualização:

Em sua mensagem publicada no Twitter anunciando a promoção de Gina Haspel a diretora da Agência Central de Inteligência (CIA), o presidente Donald J. Trump anunciou que ela era a “primeira mulher a ser nomeada para o cargo”.

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Como feminista e egípcia, não estou comemorando.

Gina desempenhou um papel direto na operação global de sequestro, detenção e tortura promovida pela CIA sob o termo "extradição extrajudicial". Dentro desse programa, adotado após os ataques do 11 de Setembro, supostos militantes que eram capturados no Afeganistão eram enviados a outros países, que os mantinham em prisões secretas e permitiam aos funcionários da CIA que os torturassem. A primeira prisão secreta foi na Tailândia, onde, como agente secreta em 2002, Gina supervisionou a tortura de dois suspeitos de terrorismo e, posteriormente, ajudou a levar a cabo uma ordem para destruir os vídeos que documentavam os interrogatórios.

Num dos episódios, um suspeito foi submetido a uma tortura tão brutal que era difícil dizer se ainda estava vivo. Abu Zubaydah foi submetido a 83 simulações de afogamento no período de um mês e arremessado repetidas vezes contra as paredes, entre outros métodos agressivos usados pelos interrogadores. Finalmente, estes concluíram que o prisioneiro não tinha nada de útil para lhes contar.

Ao menos 54 países apoiaram o programa de extradições. Como egípcia, estou consciente e envergonhada do envolvimento do governo do meu país, um dos que mais se prestou a ajudar os americanos.

Egito, Marrocos, Jordânia e Síria estiveram entre os destinos mais comuns dos suspeitos extraditados extrajudicialmente. Gina e outros administradores do programa puderam contar com o Egito para fazer o trabalho sujo exigido pela CIA. Faz tempo que os relatórios anuais emitidos pelo departamento de estado e organizações de defesa dos direitos humanos documentam o emprego sistemático de tortura por sucessivos governos egípcios.

Esse trabalho sujo que o governo do presidente Hosni Mubarak (apoiado por cinco governos americanos sucessivos) fazia tão bem foi instrumental no fornecimento de informações falsas usadas pelo governo do presidente George W. Bush como pretexto para a invasão do Iraque. Depois que o líbio Ibn al-Shaykh al-Libi, capturado no Afeganistão, foi extraditado extrajudicialmente pelos Estados Unidos para o Egito em 2002, interrogadores egípcios o espancaram e o sujeitaram a uma “simulação de enterro”, deixando-o numa caixa apertada por 17 horas. Ele fabricou informações segundo as quais o Iraque teria oferecido treinamento no uso de armas químicas e biológicas para agentes da Al Qaeda. 

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Gina Haspel, que entrou na CIA em 1985, comandou operações clandestinas após o 11 de Setembro Foto: AP/CIA

Em 2003, o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, citou essas informações em seu discurso às Nações Unidas ao apresentar a suposta existência das “armas de destruição em massa” iraquianas, posteriormente desmentida.

Libi corrigiu seu relato depois de ser devolvido à custódia da CIA em 2004, com a guerra em andamento. Os americanos o devolveram à Líbia no final de 2005 ou início de 2006, permanecendo detido na prisão Abu Salim, onde, em 2009, aos 46 anos, ele morreu num aparente suicídio. Seus amigos desconfiaram da suposta causa da morte.

As dúzias de “prisioneiros fantasmas” como ele que estiveram sob custódia americana no exterior são apenas alguns dos vergonhosos exemplos de cooperação entre o governo do meu país e o programa de extradições da CIA.

Como um funcionário do governo americano pode cobrar nosso governo pelos casos de tortura contra nós, o povo egípcio, quando os próprios americanos dependeram dos egípcios para praticar torturas piores do que as de seus agentes? É impossível, e não haverá cobrança. E sucessivos governos egípcios contam com isso. A probabilidade é ainda menor com Gina no comando. Além disso, embora governos americanos anteriores tenham ao menos incluído em sua retórica a condenação da tortura no Egito, o presidente Donald J. Trump disse que acredita “totalmente" na eficácia da tortura e, enquanto fazia campanha em 2015, afirmou que aprovaria as simulações de afogamento “num piscar de olhos".

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A opção de promover Gina para a diretoria não é uma vitória para as mulheres. Meu feminismo não exige que uma mulher tenha direitos iguais como torturadora, gozando da mesma impunidade dos homens. Não comemoro as nomeações de mulheres para altos cargos de governos nos quais a crueldade é a ferramenta de controle preferida de um patriarcado; ao aceitarem tais cargos, elas se tornam soldados rasos desse patriarcado e da violência instituída por ele.

Em vez disso, meu feminismo trabalha para desmontar o patriarcado e sua violência, seja ela sancionada pelo estado, como no caso da tortura, ou praticada em casa, na forma da violência doméstica ou contra a parceira conjugal.

Não defendo um feminismo que exige das mulheres a perfeição ou uma nobreza heroica. Mas insisto que colocar as mulheres a serviço do patriarcado não é uma vitória para nós. Esses debates voltarão muitas vezes conforme as mulheres exigem a inclusão em instituições que não foram amigas delas, como as forças armadas, as instituições religiosas, as corporações e até a CIA.

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Trump está longe de ser um amigo das mulheres. O presidente é acusado de conduta imprópria por pelo menos 19 mulheres. Independentemente do número de mulheres que ele decida promover em seu governo patriarcal, ele está longe de ser um feminista. Para mim, feminismo não é contar o número de mulheres em cargos importantes.

A questão do feminismo está ligada ao que este presidente representa, àquilo em que essas mulheres trabalham e ao que buscam realizar. É por isso que me recuso a comemorar essa decisão de promover Gina Haspel, uma mulher com larga experiência na crueldade e na dissimulação. Ela e os demais responsáveis pelas torturas da CIA devem ser responsabilizados por seus crimes, e não recompensados.

Mona Eltahawy é a autora de “Headscarves and Hymens: Why the Middle East Needs a Sexual Revolution". 

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