Nosso passado de imigrantes é esquecido

Minha mãe foi heroica, mas muitos americanos a viam apenas como uma forasteira do Vietnã

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Por Viet Thanh Nguyen
Atualização:

Eu tinha me esquecido da imagem da minha mãe, sentada sozinha, lendo em voz alta o boletim de uma igreja. Ela só conseguia ler assim, pois sua escolaridade não ia além do ensino fundamental. Como adolescente americano fluente no inglês, eu sentia pena dela, e talvez um pouco de vergonha.

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A lembrança me veio à mente quando soube dos comentários feitos pelo chefe de gabinete da Casa Branca, John Kelly, a respeito dos imigrantes irregulares que entram no país pelo sul da fronteira, descritos por ele como pessoas que “não são facilmente assimiladas nos Estados Unidos, na nossa sociedade moderna".

“São geralmente pessoas de comunidades rurais. Nos países de onde eles vêm, a escolaridade da população não costuma ir além do quarto ou sexto ano. Não falam inglês", disse Kelly. “Eles têm dificuldades de integração; não são capacitados. Não são pessoas ruins. Elas vêm para cá por um motivo, e eu compreendo esse motivo. Mas a lei é a lei.”

Kelly diz compreender as motivações dessas pessoas, algumas das quais são como minha mãe, nascida num universo rural. Mas Kelly (como o presidente Donald J. Trump, que recentemente chamou de "animais" alguns imigrantes irregulares) não é capaz de sentir empatia por elas. Sua incapacidade de enxergar ou perceber o mundo como elas é compartilhada por muitos americanos.

Isso inclui alguns de meus colegas americanos vietnamitas, que, embora tenham chegado a este país como refugiados de guerra, estão dizendo que os Estados Unidos não deveriam aceitar mais refugiados, especialmente vindos de lugares como a Síria. Alguns, como o prefeito americano vietnamita de Westminster, Califórnia, que abriga a maior população de vietnamitas fora do Vietnã, chegam a dizer que os EUA não deveriam aceitar nenhum imigrante regular, pois este grupo inclui “criminosos".

De acordo com esse raciocínio, nós somos os refugiados bons. Esses novos refugiados são maus.

Cresci na comunidade de refugiados vietnamitas em San José, Califórnia, nos anos 1970 e 1980, e posso afirmar que não faltavam refugiados maus entre nós. Trapaças do sistema de assistência social. Dinheiro não declarado. Violência ligada a gangues vietnamitas, especializadas em invasão a domicílio.

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Tudo isso foi esquecido. Os americanos vietnamitas são agora parte da “minoria modelo” que acredita ter conquistado o sucesso, sem depender quase nada da assistência do governo. Eles não são muito diferentes de Kelly, descendente de imigrantes irlandeses e italianos que incluíam trabalhadores pouco qualificados que quase não falavam inglês. Uma amnésia conveniente envolvendo as próprias origens das comunidades é um traço típico dos americanos, pois acreditamos ser o país onde todos podem ter um novo começo.

Minha mãe foi heroica, mas muitos americanos a viam apenas como uma forasteira (Credit: Illustration by Wenting Li for the New York Times) Foto: Wenting Li ilustração NYT

O que alguns de nós também esquecem é que, em quase todas as etapas da história do nosso país, as pessoas que já tinham se consolidado como cidadãs americanas encontraram alvos convenientes para serem designados como impossíveis de serem assimilados: os povos indígenas, os mexicanos conquistados, os escravos, ou os imigrantes mais recentes, habitualmente classificados como não brancos.

Em 1751, antes mesmo da fundação do país, Benjamin Franklin escreveu que “talvez eu tenha preferência pela aparência da gente do meu país, pois esse tipo de preferência é natural ao ser humano". Ele favorecia “os ingleses” e “os brancos", e não queria que a Pensilvânia se convertesse numa “colônia de alienígenas", que “jamais adotarão nossa linguagem e idioma, assim como lhes é impossível adotar nossa aparência". Ele estava se referindo aos alemães.

Os americanos alemães são agora “brancos". A brancura dos americanos alemães os salvou de serem mandados para campos de concentração durante a 2ª Guerra Mundial, como ocorreu com os americanos japoneses. Com lições históricas desse tipo, não surpreende que alguns americanos vietnamitas desejem deixar para trás seu passado de refugiados, incluindo a lembrança do fato de que apenas 36% dos americanos queriam aceitar refugiados vietnamitas em 1975.

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Assim, há uma escolha para cada imigrante e refugiado, e também seus descendentes. Kelly e alguns americanos vietnamitas optaram por esquecer o passado ou reformulá-lo de modo a retratar a si e suas famílias como americanos heroicos e independentes que são melhores do que o imigrante ou refugiado mais recente e ameaçador. Ao esquecer o passado, esses americanos repetem aquilo que existe nos EUA desde o início do país: o medo sempre renovado de alguém de pele mais escura, alguém diferente.

Prefiro lembrar o heroísmo de minha mãe e como sua história teve início antes mesmo de ela se tornar uma cidadã americana, mudando o nome para Linda. Ela nasceu como Bay, ou "Sete", numa época em que às vezes os vietnamitas tinham tantos filhos que era mais fácil dar a eles números em vez de nomes.

Com meu pai, que completou o ensino médio, ela saiu sozinha da pobreza rural e se tornou uma mulher de negócios bem sucedida ao assumir riscos significativos, o primeiro deles sendo a viagem do Vietnã do Norte para o Vietnã do Sul em 1954. Eles perderam quase tudo quando enfrentaram o maior de todos os riscos e se fugiram para os EUA como refugiados em 1975.

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Quando eu a observava lendo em voz alta para si mesma, doze anos após seu recomeço americano, minha mãe era novamente uma mulher de negócios bem sucedida. Já tinha sido baleada duas vezes em sua loja, episódio que não testemunhei, e certa vez um ladrão apontou uma arma para o rosto dela em nossa casa, na minha frente.

Ela não fala inglês fluentemente, mas teve sucesso o suficiente para contribuir mais no pagamento de impostos do que muitos americanos. Ela foi e continua sendo heroica, mas muitos americanos a verão apenas como forasteira, incluindo aquele que colocou uma placa perto do mercado dos meus pais em San José: “Outro americano levado à falência pelos vietnamitas".

Como resultado de tudo que ela conseguiu, recebi ensino e tive um lar, e poderia ter me tornado um americano desmemoriado, ansioso para ser aceito pelos outros americanos, pronto para mostrar minha americanidade mantendo pessoas como meus pais fora do país. Mas eu me senti como um daqueles americanos vietnamitas - e há muitos de nós - que não querem esquecer que devemos ficar ao lado dos refugiados e imigrantes, dos pobres e dos indesejados, de pessoas bem parecidas com a minha mãe.

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