Kefaya! Chega! A história do movimento jovem no Egito

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Por adrianacarranca
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Quem acompanhou os protestos dos últimos dias nas ruas do Cairo, Alexandria, Suez e outras cidades egípcias pode se perguntar como tudo foi acontecer tão rápido, como num efeito dominó iniciado com o levante popular que derrubou o ditador da Tunísia, Zine al-Abidine Ben Ali, há 15 dias. Mas há muito o Egito era um caldeirão prestes a explodir.

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Quando estive lá pela primeira vez, em 2005, manifestantes tomavam as ruas do Cairo e outras cidades por todo o país para protestar contra a possibilidade, confirmada nas eleições de setembro daquele ano, de que o Presidente Hosni Mubarak permanecesse no cargo pelo quinto mandato consecutivo - os mandatos presidenciais no Egito são de seis anos. Esse ano, Mubarak completa três décadas no poder. Mas já em 2005, os jovens egípcios gritavam "Kefaya" (algo como "chega" ou "é o suficiente")!

As primeiras manifestações contra a permanência de Mubarak no governo e a preparação do filho, Gamal, como provável sucessor ao cargo deram origem naquele ano ao Kefaya, o movimento civil formado por jovens sem envolvimento político. Eles revitalizaram as manifestações populares que há muito já não se via nas ruas do Egito - os protestos foram banidos no Egito desde o assassinato do presidente Anwar Sadat em 1981.

Durante todo o ano de 2005, os protestos e vigílias voltaram às ruas. Apesar de serem duramente combatidos pela polícia, as manifestações não pararam. O Kefaya preparou um manifesto pedindo reformas constitucionais e econômicas. Assinado por 300 ativistas, tornou-se a declaração de fundação de um movimento nacional de coalizão por mudanças no Egito. A essa coalizão aderiram mais tarde apoiadores de diversas linhas da oposição, esquerdistas, liberais, islamistas; professores universitários, juízes, sindicalistas, jornalistas, escritores, associações de médicos.

Em setembro de 2005, o Egito teve a primeira eleição direta de sua história. O governo egípcio foi acusado de prender oposicionistas e de manipular o pleito. Os egípcios boicotaram as eleições - pouco mais de 20% dos eleitores foram às urnas. Mubarak saiu vitorioso, com 88,6% dos votos, e aumentou a pressão sobre os dissidentes. Mas o movimento por reformas estava lançado.

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Nos anos seguintes, o Kefaya passou por mudanças políticas e foi alvo de críticas, mas seu principal mérito foi inspirar outros grupos, como o Jovens por Mudanças e o 6 de Abril, formado em apoio às demandas por direitos dos trabalhadores da cidade industrial de El-Mahalla, em 2008.

Em poucos meses, o 6 de abril reunira mais de 100 mil jovens universitários, mobilizados via Twitter e organizados em torno de grupos de discussão em redes sociais como o Facebook. Na rede, eles discutem desde o conflito entre Israel e palestinos até a guerra no Iraque, o controle da imprensa, a corrupção, o desemprego, a má qualidade da educação.

No ano passado, o assassinato do jovem egípcio Khaled Said, espancado até a morte por policiais corruptos que ele flagrara vendendo drogas, gerou outro movimento semelhante, o Somos Todos Khaled Saids. Poucas horas depois de a família de Said colocar as fotos do jovem morto na Internet, o grupo online já tinha 300 mil integrantes no mundo árabe. A página do grupo no Facebook tem 29 mil apoiadores.

O Somos Todos Khaled Saids foi um dos grupos que tomou as ruas do Cairo, hoje. O passo a passo dos acontecimentos - a movimentação das massas até a Praça Tahir, as declarações do governo, a ação da polícia, a prisão domiciliar do Nobel da Paz ElBaradei, o toque de recolher - foram sendo reveladas minuto a minuto no site e no Facebook da organização e de outros movimentos semelhantes.

"É uma geração educada, politizada, que cresceu em contado o mundo via Internet. Eles não veem futuro no Egito e é isso o que estão buscando com os protestos", diz a jornalista brasileira de origem egípcia Randa Achmawi, correspondente da edição francesa do principal jornal do Egito, o Al-Ahram, para diplomacia e política externa.

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Atualmente em Londres, ela havia perdido a comunicação com o filho, Mohamed, que vive no Cairo, desde a meia-noite de anteontem, porque o governo egípcio bloqueou o acesso à Internet. Antes de falar com a mãe pela última vez, Mohamed, que havia prometido ficar em casa durante os protestos, declarou: "Desculpa, mas amanhã eu vou me juntar aos outros jovens nas ruas".

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"Eu fiquei desesperada", disse Randa. Dezoito horas depois, seu telefone tocou. Era Mohamed, já em segurança na casa de um amigo. Ele estava um tanto triste com a situação no país, mas ao mesmo tempo animado, esperançoso, talvez até orgulhoso do povo que saiu nas ruas. O canal de TV Al-Arabey exibiu imagens de policiais, jovens como Mohamed, tirando a farda e juntando-se aos outros em protesto. "O Egito era um vulcão, prestes a entrar em ebulição", revela Randa, que vive no Egito há quase 20 anos. Um ditado árabe diz que para fazer um oceano basta a primeira gota. "O acontecimento na Tunísia era a gota que faltava".

Foto: Página do Somos Todos Khaled Saids no Facebook.

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Acompanhe as notícias sobre os protestos, em tempo real, no blog do Gustavo Chacra.

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O blog Pelo Mundo volta a publicar a partir de segunda-feira os relatos sobre a viagem a Israel e territórios palestinos.

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