adrianacarranca
29 de agosto de 2014 | 09h22
Quando estive no leste da República Democrática do Congo (ex-Zaire), em outubro, eu me perguntava por que ninguém estava olhando para uma guerra que havia deixado até então seis milhões de mortos, por causas direta ou indiretamente ligadas aos conflitos. Na ocasião, escrevi:
É o maior e mais sangrento conflito desde a 2ª Guerra, produziu mais vítimas do que todos os combates recentes somados. É o holocausto africano. Mas pouco se ouve falar sobre ele porque ocorre na floresta densa de um continente esquecido, a África, não mata brancos, não ameaça o Ocidente desenvolvido.
O Congo voltou, afinal, ao noticiário internacional esta semana, com o registro de dois casos de contaminação pelo vírus ebola. O ebola matou 1.552 pessoas (e não 6.000.000) na Guiné, Libéria, Serra Leoa e Nigéria. É o pior surto da doença. Mas não se engane. O continente esquecido voltou às manchetes do mundo por um único e perverso motivo: porque o ebola ameaça matar brancos e ricos.
O vírus letal não distingue cor de pele, condições econômicas ou geografia. E é por isso que o mundo se espantou. Só por isso provocou uma das coberturas mais midiáticas da tragédia africana. De epidemias a África padece desde sempre, diariamente. E ninguém está nem aí.
Para o ebola, não há ainda remédio ou vacina que o mundo desenvolvido possa comprar, enquanto milhões de negros africanos morrerão sem acesso a eles. Não há sistema imunológico fortalecido pela boa alimentação e condições sanitárias adequadas que evitem uma possível contaminação, caso o vírus se espalhe – como poderiam evitar a diarreia, a principal causa de mortes no Congo, onde essa doença facilmente evitável mata mais do que a guerra, ou a malária, que hoje mata o dobro do que os confrontos no país.
A malária mata 800 mil pessoas por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde – mais de 2 mil por dia (um novo surto de ebola a cada dia, dia após dia). As principais vítimas são crianças africanas.
Houve surtos do vírus ebola no passado. E por que os laboratórios não se preocuparam com isso? Pelo mesmo motivo que não se preocupam com a malária: não faz vítimas onde o dinheiro está. E por que parecem se preocupar agora? Porque o mundo se globalizou e também as mazelas, porque com isso aumentou a preocupação de que doenças como o ebola cheguem ao Ocidente desenvolvido no corpo frágil dos milhares de refugiados e imigrantes que driblam a segurança e invadem as fronteiras dos países ricos todos os dias.
A comoção com o ebola não tem nada a ver com uma repentina solidariedade com milhões mortes na África ou a falta de remédios para os negros africanos. Um exemplo disso: há 15 dias, a Justiça brasileira se negou a encaminhar dois jovens de 15 e 16 anos que chegaram ao Porto de Santos escondidos em um navio.
Não há dúvida de que o ebola é uma tragédia. Mais uma entre as tantas tragédias africanas. Doenças facilmente evitáveis ou com possibilidade de tratamento já mataram, e continuam matando, aos milhões na África; a miséria e a falta de tudo, mais do que as guerras. O preconceito e a indiferença, nem se fala.
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