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Os Hermanos

Kirchners e Clarín: de íntimos aliados a mortais inimigos (e um rocambolesco exame de DNA)

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Por arielpalacios
Atualização:

Kathleen Turner e Michael Douglas interpretando o outrora apaixonado casal que protagonizava uma feroz briga mortal no filme 'A guerra dos Roses' (de 1989, dirigido por Warren Adler). Em Buenos Aires, analistas comparam a briga dos Kirchners com o Clarín com o supracitado filme de Hollywood. Isto é, do tórrido casamento ao divórcio com abundantes sopapos e golpes letais.  Mas, 'A guerra dos Roses' seria 'un poroto' perto deste mega-imbroglio político-empresarial ("un poroto", na gíria portenha, é usado para referir-se a algo insignificante perto de uma coisa ou de um evento de maior magnitude. Exemplo: 'o escândalo de corrupção do senador Camelot de Almeida e sua esposa Fernandinha Pit Stop Vladivostok é un poroto perto da roubalheira protagonizada pelos irmãos  e deputados Mutatis e Mutandis de Albuquerque')

A relação com o maior holding multimídia do país começou em 2003 quando Kirchner tornou-se a última cartada do presidente provisório Eduardo Duhalde (2002-2003) contra seu rival e ex-presidente Carlos Menem nas eleições presidenciais. O Clarín, brigado com Menem e aliado de Duhalde, respaldou o desconhecido Kirchner, que nos doze anos prévios havia sido governador de Santa Cruz, província sem peso (representa 1% do eleitorado argentino).

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Nesse intervalo, o holding foi beneficiado com a autorização para a fusão das duas maiores empresas de TV a cabo do país, a Multicanal e a Cablevisión, realizada em 2007. A operação foi possível graças à intervenção pessoal de Kirchner, que ignorou as críticas sobre práticas monopólicas. A Multicanal-Cablevisión atualmente gera mais de 60% do faturamento do Grupo Clarín.

Durante esse período, os jornalistas do "Clarín" tiveram posição privilegiada de acesso a informações do governo, enquanto que ignorava o resto da mídia. Em troca o Clarín era suave na cobertura dos problemas da administração Kirchner. A mídia crítica recluía-se aos jornais "La Nación", "El Cronista" e "Perfil".

O 'divórcio' foi  marcado pelo governo em 2008 com um comício perante 100 mil militantes no qual a presidente Cristina denunciou uma suposta conspiração para um golpe de estado armado pelos ruralistas, a oposição e o "Clarín". De lá para cá, os Kirchners desferiram um intenso conflito contra o grupo.

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Em meio a esta guerra o governo aplica amplo leque de armas, entre elas as visitas inesperadas da Receita Federal às casas de executivos do Clarín, enquanto que seus jornalistas sofrem agressões verbais constantes de militantes kirchneristas que os esperam nas portas de suas casas.

Além disso, os Kirchners fecharam as portas para jornalistas do grupo, que possuem grandes dificuldades para obter informações do governo. Ministros e secretários que passam informações aos jornalistas do Clarín correm o risco de sofrer punições. A recente renúncia de Jorge Taiana ao posto de chanceler foi parcialmente atribuída às suspeitas da presidente Cristina de que seu fiel ministro teria repassado informações a jornalistas do Clarín.

Enquanto isso, o Clarín aproveita qualquer desliz do governo Kirchner para desferir duras críticas.

...É, sem dúvida, o paraíso para os estudantes que estiverem preparando uma tese de doutorado sobre a mídia e governos.

Jorge Asís, ex-embaixador na Unesco, polemista e ex-integrante do jornal "Clarín", autor do blog "Jorge Asís Digital" e da novela "Flores roubadas nos jardins de Quilmes" (na qual conta os bastidores amorosos e políticos de um jornal que implicitamente é o "Clarín"), em entrevista ao Estado foi categórico: "o Clarín foi um Dr. Frankenstein que inventou o monstro dos Kirchners que depois rebelou-se contra seu criador e o liquidou"

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Às vezes dá para tomar um chá com Frankenstein (Boris Karloff, em uma pausa de sua interpretação do emblemático 'monstro')

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Abalado pelo intenso confronto com Néstor e Cristina Kirchner nos últimos dois anos, o Grupo Clarín, o maior holding multimídia da Argentina, sofreu uma drástica perda de valor na bolsa portenha. Em outubro de 2007, uma semana antes das eleições presidenciais - quando era aliado do casal Kirchner - suas ações valiam 30,45 pesos. Na semana seguinte às eleições, com a vitória de Cristina Kirchner, haviam subido para 32,10 pesos.

Mas, em 2008, com o início do conflito do governo com os ruralistas a aliança Kirchners-Clarín se desfez. A presidente Cristina acusou o holding de estar por trás de um "golpe de Estado" em conjunto com os produtores agropecuários e os partidos da oposição.

Na sequência seguiu-se uma série de pressões aos jornalistas do Clarín, que incluíram outdoors nas ruas com suas fotos. O efeito imediato da campanha foi a queda das ações, que despencaram para 14 pesos em julho daquele ano. Doze meses depois, no dia 26 de junho de 2009, o cenário era ainda pior, já que as ações eram cotadas em 5,55.

No entanto, dois dias mais tarde, os Kirchners foram derrotados nas eleições parlamentares, conseguindo apenas 30% dos votos, fato que permitiu leve recuperação das ações do Clarín, que subiram para 8 pesos.

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O alívio durou pouco, pois o grupo havia tornado-se no  principal inimigo dos Kirchners, que - para reduzir o poder do Clarín - criaram a Lei de Mídia, definida pelo ex-presidente Kirchner como "a mãe de todas as batalhas".

A lei, aplicada a todos os meios de comunicação, mas cujo alvo principal, segundo o próprio governo, é o Clarín, proíbe que um único grupo possa ter um canal de TV a cabo e uma emissora de TV aberta o mesmo tempo, restringe o alcance dos canais a 35% da população do país, reduz o período de licenças de 20 para 10 anos, além de impor uma revisão das licenças a cada dois anos. Os grupos de mídia que não se encaixem nesses requisitos deverão desprender-se das empresas adicionais no período máximo de um ano.

A lei foi aprovada pelo Parlamento em meio a intensa controvérsia em outubro de 2009. As ações do grupo Clarín caíram para 7 pesos. Para complicar o clima de tensão, a AFIP (a Receita Federal argentina) realizou uma blitz com mais de 200 agentes na sede do Clarín para intimidar os funcionários. O governo nunca apresentou justificativas para a ação do fisco.

Na sequência, o sindicato dos caminhoneiros, aliado do governo, impediu com piquetes, durante várias noites, a saída dos exemplares do jornal da gráfica. Nunca antes, desde a volta da democracia, em 1983, um meio de comunicação havia sido alvo de tal magnitude de pressões por parte de um governo civil.

Em dezembro passado a Lei de Mídia foi suspensa na Justiça por intermédio de diversas liminares. De lá para cá, graças à sua suspensão temporária, a cotação do Grupo Clarín voltou a crescer. Nesta semana as ações estavam em 12 pesos.

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A lei, que estabelece restrições inéditas à atuação de grupos de mídia é defendida pela presidente Cristina Kirchner como uma forma de "democratizar" o setor e acabar como os "monopólios". Mas, as empresas de mídia críticas do governo argumentam que a lei não passa de uma forma de restringir a atuação da imprensa, além de criar um cenário que permite que empresários aliados do governo comprem meios de comunicação a preços baixos.

A lei poderia ser aplicada em sua totalidade até o final deste ano, caso caiam as barreiras que ainda existem nos tribunais. 

O Clarín teria de reduzir seu número de 200 licenças de funcionamento para apenas 10. A lei também proíbe que um grupo de difusão audiovisual tenha abrangência sobre mais de 35% da população - por intermédio de seus canais de cabo, o Grupo Clarín atinge atualmente 56% do país.

Carlos Gamond, presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa da Associação de Empresas Jornalísticas (Adepa) e diretor do jornal "El Puntal", de Río Cuarto, Província de Córdoba, disse ao Estado que um dos efeitos da lei é o de criar "minifúndios midiáticos", já que as empresas de mídia serão "fragmentadas".

O ex-secretário de Comunicações Henoch Aguiar afirmou que em 2011 haverá fortes compras conjunturais de empresas de mídia, mais por motivos políticos das eleições do que por posições estruturais no mercado".

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EMPRESÁRIOS AMIGOS DO GOVERNO, OS FAVORECIDOS COM NOVA LEI DE MÍDIA - Analistas e líderes da oposição afirmam que a lei de mídia, se for totalmente implementada, provocará uma onda sem precedentes de vendas de meios de comunicação e abrirá caminho para que grupos empresariais alinhados com a presidente Cristina e o ex-presidente Néstor Kirchner - os denominados "empresários K" - possam comprar canais de TV e estações de rádio. 

"Existem casos de pequenos empresários - ou de pessoas que sequer eram empresários - que graças às relações com os Kirchners, transformaram-se em grandes empresários", afirma Fernando Sánchez, deputado da Coalizão Cívica, de oposição.

Segundo ele, um dos casos é o de Rudy Ulloa Igor, ex-contínuo, ex-chofer e ex-secretário privado do casal Kirchner, e atual magnata da mídia no sul da Argentina que agora tenta expandir-se na capital do país.

Os analistas também indicam que a Electroingeniería - forte companhia na distribuição de energia elétrica e na concessão de estradas - seria o núcleo de outro potencial grupo de mídia alinhado com os Kirchners. A empresa, que adquiriu em novembro de 2008 a Radio del Plata, demitiu o jornalista Nelson Castro, um dos mais prestigiados analistas políticos do país, por suas observações críticas com o casal Kirchner.

"Electroingeniería é o braço executor mais leal de Néstor Kirchner", afirma o deputado Juan Carlos Morán, da Coalizão Cívica. "Kirchner está por trás dessa empresa. O ex-presidente compra os meios de comunicação para que não exista liberdade de imprensa".

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MÍDIA ALIADA - O governo Kirchner conta com uma longa lista de meios de comunicação aliados (a oposição e analistas até afirmam que os Kirchners contam com seu próprio 'monopólio' de meios de comunicação), entre os quais citamos alguns:

- Canal 7, Radio Nacional, Agência de Notícias Télam (todos estes com filiais em todo o país), o Canal Encuentro, além de uma dúzia de outros canais de TV e rádios nacionais e provinciais (neste caso, são todos meios estatais)

- Jornal El Argentino, jornal Tiempo Argentino, jornal Buenos Aires Económico, Radio América, canal de TV CN23, revista Veintitrés, Revista Newsweek Argentina, Revista Siete Días (e outra meia dúzia de meios pertencentes ao Grupo Szpolski)

- Jornais Página 12 e Rosario 12

- Radio Belgrano, Radio Splendid, FM Rock& Pop, FM Metro, Revista El Federal (e outra meia dúzia de meios, pertencentes ao Grupo Moneta, de Raúl Moneta, um empresário no passado intensamente vinculado ao ex-presidente Menem que agora é aliado do governo Kirchner) 

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No entanto, as empresas brasileiras ficariam de fora desta possibilidade, já que o Brasil - apesar da integração do Mercosul - não conta com tal tipo de acordo com a Argentina. Grupos de mídia colombianos, mexicanos, venezuelanos ou chilenos tampouco poderiam. Italianos, sim.

Para o governo, a intervenção na Papel Prensa é estratégica. Desde 1976, a empresa que abastece a maior parte dos jornais argentinos é controlada pelo Grupo Clarín (49% das ações), o jornal "La Nación" (22,49%) e o Estado argentino (27,46%).

O governo tenta, desde o ano passado, expulsar o "Clarín" e o "La Nación". Para isso, argumenta que Lidia Papaleo Graiver, viúva do banqueiro David Graiver, vinculado ao grupo guerrilheiro Montoneros, teria sido obrigada em 1976 a vender sua parte na empresa ao "Clarín", ao "La Nación" e ao "La Razón", que faliu em 2000.

De quebra, o governo tenta levar a presidente do grupo, Ernestina Herrera de Noble à cadeia por suspeitas de que seus filhos adotivos sejam filhos sequestrados de desaparecidos da ditadura (1976-83). A capacidade de defesa do Clarín complica-se pela idade de Ernestina Noble, de 85 anos, e os problemas graves de saúde (câncer de laringe) de seu braço direito e CEO da holding, Héctor Magnetto, de 66 anos.

NEGOCIAÇÕES - Ricardo Roa, editor-adjunto do "Clarín" disse ao Estado que "o jornal está sofrendo com o custo econômico da ofensiva do governo". "Mas transmitimos a nossos jornalistas que a diretriz é a de manter a linha editorial, apesar dos enormes custos que isso implica ante um governo que ignora a necessidade de existência da imprensa independente. Vamos agir mais na internet. Este é um grupo de mídia. Sempre foi assim, e assim continuaremos".

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Julio Bárbaro, ex-diretor do Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer, organismo que regula a mídia) disse ao Estado que "o Grupo Clarín valia US$ 4,7 bilhões há quatro anos (antes dos choques com o governo). Hoje vale pouco mais de US$ 1 bilhão". Segundo ele, "o 'Clarín' continuará existindo, mas não terá o mesmo predomínio dos últimos 20 anos. "Seu problema foi concentrar muitos veículos, que atraíram o ódios de setores políticos e empresariais".

Segundo o ex-diretor do Comfer, "os Kirchners não tentarão acabar com o conservador 'La Nación', pois precisam desse jornal como 'a voz do inimigo', como os representantes de um setor da sociedade, a oligarquia".

"Acho difícil que possa ser feita uma negociação entre o governo Kirchner e o Grupo Clarín, a não ser que ocorresse uma mudança no comando do jornal. Os dois lados tentaram aproximações em diversas ocasiões depois da votação da Lei de Mídia. Mas, do jeito que estão as tensões hoje em dia, é muito difícil, pois os dois lados possuem posições fundamentalistas", disse Aguiar ao Estado. E usa uma expressão tipicamente argentina para ilustrar uma situação que chegou a um ponto sem retorno: "La sangre ya llegó al río" (o sangue já chegou até o rio).

Nesta postagem, a presidente Cristina recomenda 'vacinar' os jornalistas. Aqui.

Nesta, alguns detalhes sobre a Lei de Mídia. Aqui.

E nesta postagem, alguns dados sobre a tensa relação do governo com os jornalistas. Aqui.

Ernestina Noble e seus filhos adotivos, Felipe e Marcela em foto do início da década. Ambos jovens, segundo o governo, seriam filhos de desaparecidos da ditadura militar.

A presidente Cristina e seu marido Néstor Kirchner, que sustentam que Noble é cúmplice do sequestro e ocultamento da identidade original de seus filhos adotivos, tornaram a investigação judicial na principal manobra para atingir pessoalmente a própria presidente do Grupo Clarín e colocá-la na prisão.

Além de Noble, o casal Kirchner pretende levar à cadeia o principal cérebro administrativo do holding, Héctor Magnetto. Segundo o ex-presidente Kirchner, Magnetto "é um delinquente" que participou da suposta operação de apropriação dos bebês em 1976, poucos meses depois do golpe de Estado.

Felipe e Marcela indicaram publicamente que não pretendem ter relações com suas eventuais famílias originais e pediram que seu caso não fosse "politizado".

ADOÇÕES - Em maio de 1976 Ernestina De Noble adotou uma menina. Segundo ela, a criança registrada posteriormente como Marcela foi encontrada em uma caixa de papelão colocada diante da porta de sua casa em San Isidro, na Grande Buenos Aires.

No entanto, naquela data, Ernestina Noble não residia nesse lugar, mas sim, na cidade de Buenos Aires.

As testemunhas que ela apresentou eram supostamente

a)      uma vizinha de San Isidro (onde Noble não morava)

b)      o jardineiro da casa

No entanto, a vizinha não morava em San Isidro, mas sim em Acasusso (era duplamente uma 'não-vizinha')

E o jardineiro não era jardineiro, mas sim, o chofer da família Noble. 

Em julho de 1976, a empresária pediu a adoção de um menino, Felipe, filho de uma mãe solteira que teria dado a criança à empresária.

No entanto,

a) a mulher que teria entregue Felipe nunca mais apareceu,

b) ...e o nome que forneceu é falso, pois não há ninguém registrado com esse nome e número de documento.

A existência de irregularidades nos documentos de adoção das crianças - e a participação de uma juíza que teria colaborado com adoções de bebês sequestrados - despertaram em 1995 as suspeitas de parentes de desaparecidos cujos filhos foram sequestrados pelos militares e da organização de defesa dos direitos humanos Avós da Praça de Mayo.

Em 2002 Ernestina foi detida por "irregularidades na adoção". Mas, após dias em uma cela, Noble foi liberada.

PARALISADO - Entre 2003 e 2008, período no qual os Kirchners e o Clarín foram aliados, o caso de Felipe e Marcela ficou paralisado.

Mas, com o fim da aliança entre o governo e o holding multimídia, o caso foi reativado de forma acelerada nos tribunais.

EXAMES DE DNA - Em dezembro, os dois jovens fizeram uma extração de sangue voluntária para o exame de DNA no Corpo Médico de Medicina Legal, que depende do Poder Judiciário, ao contrário do Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), controlado diretamente pelo governo.

No entanto, Felipe e Marcela indicaram que só fariam o exame para cotejar o DNA com os das duas famílias que entraram com um processo na Justiça, alegando que eles eram os netos desaparecidos. O teste, no entanto, não foi realizado no laboratório, já que a investigação passou para o BNDG, instituto do qual os irmãos desconfiam.

O juiz Conrado Bergessio ignorou o exame voluntário e ordenou a invasão das casas de Marcela e Felipe, para a coleta compulsiva de pentes e escovas de dente para coletar material genético e para preparar um novo exame. Mas, este teste tampouco foi concluído.

Em maio, a juíza Sandra Arroyo Salgado chamou os dois jovens para pedir-lhes uma nova extração de sangue para ser cotejado com as mais de 250 famílias que procuram seus netos desaparecidos, cujos dados genéticos estão no BNDG.

Marcela e Felipe negaram-se e partiram do tribunal em um carro. A polícia seguiu o veículo, e apontando suas armas, detiveram os dois irmãos. Minutos depois, Felipe e Marcela foram liberados. Mas, quando chegaram na casa de sua mãe, a polícia novamente os esperava. Ali, ordenaram que ficassem nus, na presença de sete policiais, e confiscaram meias e roupas de baixo. Os irmãos denunciaram a ação da juíza como "indigno".

No entanto, a contagem regressiva para o resultado do exame de DNA que desvendaria suas reais identidades foi interrompida há duas semanas, já que o BNDG admitiu que as amostras genéticas que estava analisando não permitiram a identificação. O anúncio desatou especulações de que o exame não teria comprovado que Marcela e Felipe são filhos de desaparecidos.

Os advogados das famílias dos desaparecidos exigem que Marcela e Felipe sejam submetidos a um novo exame genético.

O caso dos dois irmãos envolve três mulheres de alta importância na Argentina. Por um lado, as duas mulheres mais poderosas do país, isto é, Cristina Kirchner e Ernestina Noble. Por outro, a líder das Avós da Praça de Mayo, Estela de Carloto, cuja organização é candidata ao prêmio Nobel da Paz neste ano por seu trabalho de quase três décadas de procura dos bebês sequestrados pelos militares. 

Em Buenos Aires circulam várias especulações sobre as falhas no exame de DNA. Aqui estão algumas das hipóteses que circulam.

Motivos? Para manter a pressão sobre o Clarín, sem embora resolver o caso.

Nesta hipótese, o governo e os jornais aliados afirmariam que o Clarín adulterou as amostras de DNA.

Nesta hipótese, o jornal Clarín insistiria com a ideia de que os Kirchners são capazes de qualquer coisa para derrubar o grupo, inclusive, adulterar as amostras de DNA.

- O exame de DNA fica inviabilizado e todo o processo na Justiça fica estancado. Nenhum lado avança sobre o outro. Empate técnico (de suposto mútuo acordo).

- O governo Kirchner suaviza a guerra contra o Clarín e deixa de lado as críticas diárias contra o holding (coincidentemente, isso está ocorrendo...as críticas acontecem, mas estão sendo menores).

- Clarín continua atacando os Kirchners, pero no mucho (as principais críticas da mídia atualmente partem do 'La Nación').

E, enquanto isso, os dois lados mantêm certa 'guerra', embora de menor intensidade, só para manter as aparências. Isto é, para dar a sensação de que ainda estão brigados.

Por trás disto? As especulações indicam que os Kirchners consideram que, para conseguir a reeleição em 2011, precisam do Clarín. E, o Clarín teria percebido que, para evitar a redução drástica de seu poder empresarial, precisa manter certa aliança com os Kirchners.

O fato é que ambos lados, desde meados do ano passado, estão abalados. Os Kirchners perderam as eleições parlamentares (conseguiram apenas 30% dos votos), enquanto que o Clarín viu suas ações na Bolsa despencarem.

Na política argentina as conexões entre políticos de esquerda, direita, centro (e qualquer outra posição), empresários e militares podem ser as mais variadas. Há conexões e interconexões para todas os gostos possíveis. Se tivéssemos que transpor um gráfico para um quadro-negro, as anotações de Linus Pauling (acima, em foto de 1979)  seriam...'un poroto'.

DURANTE A DITADURA...

- Ernestina Herrera de Noble comandava o jornal "Clarín", na época um dos principais da Argentina. Noble estava alinhada com a ditadura militar (o Clarín esteve alinhado com quase todos os governos, na maior parte do tempo).

- Casal Kirchner: Néstor e Cristina Kirchner, que moravam em La Plata, capital da província de Buenos Aires, onde haviam estudado Direito, foram para Río Gallegos, capital da província de Santa Cruz pouco após o golpe de março de 1976. Ao contrário de vários amigos militantes seus, o casal não foi para o exílio, nem foi internado nos campos clandestinos de detenção ou torturado. Os Kirchners prosperaram em Río Gallegos atuando como advogados especializados em hipotecas (favorecendo os bancos e instituições financeiras, não das pessoas que pediam as hipotecas).

- Ernestina Herrera de Noble: depois de apoiar a ditadura, respaldou a democracia e os governos civis. Apoiou o presidente Alfonsín durante um período, e depois passou a criticá-lo. Apoiou o presidente Menem durante um período e depois passou a criticá-lo. Idem para Fernando De la Rúa. O Clarín apoiou o presidente Duhalde no meio da crise de 2001-2002. Na sequência, apoiou o delfim de Duhalde, Kirchner. E depois, a esposa deste, Cristina.

- Casal Kirchner: depois de não exercer atividade de resistência contra a ditadura entraram na vida política na democracia (a qual respaldaram). Kirchner foi eleito prefeito de Río Gallegos e depois governador de Santa Cruz. Cristina Kirchner foi eleita deputada e depois senadora. Em 2003, com respaldo do Clarín, foi eleito presidente. Em 2007, com respaldo do Clarín, Cristina foi eleita presidente.

Ernestina Noble: Dona do Clarín é suspeita de ter adotado filhos de desaparecidos. Mas, desde a volta da democracia, depois do jornal "Página 12", o Clarín, foi o jornal que mais deu cobertura sobre as violações aos direitos humanos durante o regime militar.

Desde a volta da democracia, em seu jornal e canais de TV trabalham/trabalharam pessoas detidas/torturadas pela ditadura.

Também trabalharam pessoas que foram coniventes/colaboraram com o regime militar. Exemplos: Héctor Magnetto, CEO do grupo Clarín. E a própria Ernestina Noble.

Kirchners: Não se opuseram aos indultos aos militares concedidos pelo presidente Menem em 1990, que perdoou a cúpula militar (Menem e Kirchners pertencem ao mesmo partido, o Justicialista, também conhecido como 'Peronista'). Ao chegar ao poder, em 2003, Kirchner passou a dar atenção aos crimes da ditadura, tornando-se o presidente que mais ocupou-se do assunto (no entanto, manteve uma aliança na província de Buenos Aires com o ex-coronel Aldo Rico, de direita, protagonista de várias tentativas de golpes militares nos anos 80) desde Raúl Alfonsín (1983-89).

Nas duas administrações Kirchner trabalham/trabalharam pessoas detidas/torturadas pela ditadura (como o ex-chanceler Jorge Taiana).

Também trabalham/trabalharam pessoas que foram coniventes/colaboraram com o regime militar, tal como o atual chanceler, Héctor Timerman, que comandou um jornal que respaldou o golpe de Estado e o regime em seus primeiros tempos. Também contam com pessoas que colaboraram com ditaduras anteriores, como o economista Aldo Ferrer, ministro da Economia dos ditadores e generais Levingston e Lanusse.

Outros integrantes do atual governo eram aliados do presidente Menem quando este implementou o indulto aos generais da ditadura em 1990.

...E Menem, por seu lado, que foi arqui-inimigo dos Kirchners entre 2003 e 2009 (os Kirchners o culpavam de todos os males recentes do país), desde o final do ano passado votou a favor do governo nas votações no Senado. Coincidentemente, os Kirchners detiveram suas críticas públicas ao ex-presidente.

Os Kirchners aliaram-se a Julio Grondona, presidente da Associação de Futebol da Argentina (AFA), no poder desde o governo do general Videla.

O casal presidencial e Grondona fizeram um lucrativo acordo no ano passado, o "Futbol para todos", com o qual pagam à AFA e aos cartolas dos clubes argentinos um total de US$ 157 milhões anuais em troca da estatização das transmissões dos jogos de futebol.

Grondona, embora intensamente vinculado com a ditadura, não é criticado pelos Kirchners. O casal presidencial nada fez para remover o principal vestígio da ditadura de seu cargo. Ao contrário, o acordo entre e a AFA e o governo fortaleceu o octogenário cartola.

A "blindagem" que Grondona possui atualmente criou um inesperado cenário: a presidente das Avós da Praça de Mayo, Estela de Carlotto, que foi à África do Sul ver de perto a seleção argentina e divulgar a candidatura das Avós para o Nobel da Paz, perguntada sobre Grondona, disse que ele era um civil sobre o qual não existiam provas de envolvimento com os crimes da ditadura.

E Diego Armando Maradona, aliados dos Kirchners, atual técnico da seleção (designado por Grondona), que não criticou os indultos aos militares dados por Menem (cujo governo respaldou), reuniu-se com Videla, em 1979, junto com os outros jogadores da seleção, para levar a taça mundial dos juvenis.

Um ano depois, o jovem Maradona reuniu-se com o futuro sucessor de Videla, o general Viola. No encontro, Maradona pediu ao militar que lhe quebrasse um galho.

Mas, o pedido não foi para a liberação de um preso político. Maradona disse na ocasião: "meu general, queremos pedir que em agradecimento, como um prêmio (pela vitória), nos dê a baixa (do serviço militar)". Mais detalhes, aqui.

1979: Ernestina Herrera de Noble, com casaco de pele, aliada na época do general e ditador Jorge Rafael Videla (de terno marrom). Ernestina foi aliada dos Kirchners entre 2003 e 2008. Os Kirchners agora são aliados de Julio Grondona, presidente da AFA desde a época de Videla, que o empossou no cargo (Grondona aparece ao fundo, ao lado do ditador). Kirchners e Grondona assinaram em 2009 suculento acordo anual de US$ 156 milhões (um acordo para estatizar as transmissões dos jogos de futebol. Antes da estatização, a empresa que transmitia os jogos era a TyC, controlada em parte pelo Grupo Clarín). O acordo Kirchners-Grondona foi enfáticamente apoiado por Maradona (que até ser designado técnico era inimigo de Grondona). Maradona aparece na foto abaixo, com Videla, em 1979. Maradona segura a taça que a seleção levou à Casa Rosada, na presença do ditador. O técnico nunca fez um mea culpa de seu respaldo ao regime na juventude.

 

Em 2009 "Os Hermanos" recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).

Gustavo Chacra (Nova York): http://blogs.estadao.com.br/gustavo-chacra/ 

Patricia Campos Mello (Washington) - http://blogs.estadao.com.br/patricia-campos-mello/ 

Claudia Trevisan (Pequim) - http://blogs.estadao.com.br/claudia-trevisan/ 

Adriana Carranca (Pelo Mundo) - http://blogs.estadao.com.br/adriana-carranca/ 

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