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Os Hermanos

Os Kirchners e a imprensa: a urticária permanente

Esta foi uma semana de intensos confrontos do casal Néstor e Cristina Kirchner com a imprensa. Os Kirchners continuaram com sua mobilização para tentar apressar o debate e a votação da nova Lei de Radiodifusão, que substituiria a velha lei, que data dos tempos da Ditadura. No entanto, o projeto do governo causa suspicácias na oposição, já que permitiria a criação de monopólios (favoráveis ao governo). Além disso, a aplicação da nova lei só poderia ser fiscalizada pelo Poder Executivo, impedindo que o Parlamento pudesse participar. Desta forma, as empresas jornalísticas dependeriam do 'humor' do governo de plantão. O ponto culminante das últimas jornadas foi a blitz realizada pela Afip, a Receita Federal argentina, à sede do jornal "Clarín", o de maior tiragem do país. Tudo indicou que a operação, que mobilizou o número inédito de 180 a 200 fiscais no edifício do jornal, tinha a intenção de intimidar o próprio "Clarín" além de outros jornais que não estão alinhados com o governo. Veremos aqui alguns pontos desta complicada relação dos Kirchners com o jornalismo, profissão que causa intensa urticária no casal presidencial.

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Por arielpalacios
Atualização:

A oposição acusa a presidente de tentar emplacar um projeto de lei "autoritário", pois determina a mais intensa intervenção do Estado argentino na mídia desde o fim da Ditadura Militar em 1983. A presidente retruca, e afirma que a nova lei significará o "fim dos monopólios" e a "democratização" da mídia.

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Uma senadora peronista me disse em off que o governo está fazendo o possível para votar a nova lei entre o final de setembro e o início de outubro. Segundo ela, o governo precisa da lei para neutralizar grupos de mídia críticos à sua gestão e favorecer empresas aliadas.

A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) anunciou preocupação pelo projeto argentino, pois "introduziria cláusulas contrárias à liberdade de imprensa".

A nova lei é o resultado da feroz briga entre o governo e o principal holding multimídia do país, o Grupo Clarín, com o qual o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) e sua esposa Cristina tiveram forte aliança entre 2003 e 2008. No entanto, o idílio acabou no início do ano passado quando explodiu o conflito do governo com os ruralistas. Na ocasião, o Clarín passou para a oposição.

O Grupo Clarín controla o Canal Trece (TV aberta), o Todo Notícias (notícias por TV a cabo) e o "Clarín", o jornal de maior tiragem na América Hispânica. Além disso, controla duas maiores empresas de TV a cabo do país, a Cablevisión e a Multicanal. Juntas, controlam quase 50% do mercado de TV a cabo.

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Mas, há uma semana e meia o governo desferiu um duro golpe ao Clarín ao rejeitar a fusão das companhias (que havia sido aprovada pelo próprio Kirchner em 2007).

A decisão, segundo informações extraoficiais, é parte da estratégia de continuar desferindo golpes contra o Clarín. Kirchner - considerado o verdadeiro poder no governo da esposa - teria ordenado, segundo fontes: "batam até que joguem a toalha".

CAPITALISMO DE AMIGOS O projeto de lei complica a situação dos atuais grupos de mídia mas favorece as empresas telefônicas - com as quais os Kirchners possuem boas relações - entre as quais a Telefónica e a Telecom, que poderão entrar no mercado do triple pay.

O deputado Claudio Lozano, do esquerdista Projeto Sur - e que ocasionalmente votava a favor de projetos dos Kirchners - declarou perplexo e indignado: "isso abre as portas às telefônicas. O Grupo Clarín faturou US$ 1,48 bilhão. Mas a Telecom faturou US$ 4,55 bilhões!".

O projeto também favorece os sindicatos, majoritariamente vinculados ao governo. As organizações sociais (parte das quais também estão na órbita dos Kirchners, como o caso das Mães da Praça de Mayo) também poderão estar presentes na mídia. As universidades públicas possuem lugar garantido na nova divisão do mapa da mídia. No entanto, as privadas dependerão da aprovação de um comitê.

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Analistas consultados indicaram surpresa com a cláusula que permite que a Igreja Católica possa contar com canais de TV e rádio sem necessidade de passar por concurso público. Segundo eles, trata-se de uma manobra para restabelecer as estremecidas relações dos Kirchners com o Vaticano, e assim, neutralizar um dos muitos setores críticos do governo. A cláusula refere-se especificamente à Igreja Católica, e não a outros cultos religiosos. O argumento é que a Igreja Católica na Argentina é uma entidade pré-existente ao próprio Estado argentino, por ter estado no país antes da própria independência nacional.

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A nova lei determina que nenhuma empresa de TV poderá ultrapassar uma cobertura geográfica que englobe mais de 35% da população argentina. Desta forma, os principais canais de TV do país, todos com base na capital, não poderão estender sua atuação mais além de Buenos Aires e os municípios da Grande Buenos Aires, que concentram 35% dos habitantes do país.

Os analistas também indicam que a nova lei permitirá "mais pluralidade". No entanto, destacam que criará "maior fragmentação" das empresas de mídia, já que estas estarão limitadas em sua abrangência geográfica.

A oposição argumenta que esse cenário provocará um "leilão" dos canais de TV do interior, que poderiam ser comprados por empresários aliados dos Kirchners, que esperam sua chance de abocanhar empresas da área de mídia.

Além disso, os pequenos canais independentes teriam que depender - em um contexto de crise econômica como o atual - dos subsídios do governo em publicidade oficial.

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Outra consequência das restrições seria o surgimento de empresas regionais de mídia, em detrimento de grupos nacionais. Por um lado, estimularia a produção local de conteúdos. Mas, por outro, afirmam os analistas, acabaria com a integração nacional da mídia argentina (o país não contou com redes nacionais de TV tal como ocorreu no Brasil de forma intensa desde os anos 70).

Esse espaço seria ocupado pelo Estado argentino, que se transformaria no único meio integrador de informações em todo o país (a nova lei não aplica restrições para a presença geográfica dos canais estatais, ao contrário dos limites aos canais privados).

PARALELOS COM CHÁVEZ E CORREA Mariano Ure, professor de Instituto de Comunicação Social (ICOS) da Universidade Católica Argentina (UCA), especializado em Ética em Comunicação, me disse que existe "crescente similitude" entre os Kirchners e o presidente venezuelano Hugo Chávez no tratamento com a mídia.

"Chávez tem desde 2005 sua 'lei de responsabilidade social' em rádio e TV. O problema é a subjetividade do conceito de 'responsabilidade social'...Aí pode entrar qualquer coisa", explica.

"O outro ponto em comum é que tratam os meios de comunicação, de forma geral, como se fossem partidos da oposição".

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No Equador, o presidente Rafael Correa também pretende limitar a ação da mídia por intermédio de uma nova lei de meios de comunicação, que seria votada antes do dia 24 de outubro. Correa costuma acusar a imprensa de estar contra a "revolução cidadã" e denomina os jornalistas de "bestas selvagens". Há três semanas retrucou uma pergunta de uma jornalista em Quito chamando-a de "gordinha horrível".

O marqueteiro Jaime Durán Barba, que assessora diversos políticos argentinos, sustentou na semana passada que a política dos Kirchners com a mídia é "quase uma cópia em papel carbônico das políticas de Correa".

- Néstor Kirchner, enquanto foi presidente, nunca deu uma coletiva de imprensa

- Em julho de 2004, durante a Cúpula do Mercosul, seu porta-voz disse furioso aos correspondentes brasileiros: "O presidente Kirchner não falou até agora com a imprensa brasileira, não falará hoje, nem nunca falará!!!". Em outra ocasião, assessores presidenciais admitiram, irritados: "vocês fazem perguntas muito inconvenientes!"

- Cristina Kirchner, enquanto foi senadora durante o governo de seu marido, nunca deu coletivas de imprensa.

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- Cristina, já presidente, concedeu um punhado de coletivas de imprensa.

- Associações de jornalistas denunciam pressões do governo a profissionais da mídia, grampos telefônicos e ameaças diversas.

- Victor Hugo Morales, um dos mais respeitados jornalistas do país, foi removido do estatal Canal 7 por convidar líderes opositores e críticos do governo a seu programa de notícias.

- Pepe Eliaschev, um dos mais famosos colunistas políticos da imprensa argentina, foi demitido da estatal Rádio Nacional por criticar o governo.

- Hermenegildo Sábat, premiado caricaturista do jornal "Clarín", foi chamado de "mafioso" em praça pública pela presidente Cristina Kirchner durante um comício perante 100 mil pessoas, por não gostar de uma caricatura que havia feito dela com um band-aid sobre a boca.

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- No ano passado, Cristina Kirchner acusou a imprensa, de forma geral, de estar armando um "golpe de Estado" em conivência com os ruralistas.

- Militantes kirchneristas participam de comícios com faixas com os dizeres "Grupo Clarín, mentiroso!".

- O sindicato dos caminhoneiros, aliados dos Kirchners, ocasionalmente impedem saída de jornais das distribuidoras, como forma de pressão.

- O governo não coloca publicidade oficial nos jornais que são críticos. A publicidade oficial - teoricamente utilizada para anunciar à população sobre medidas do governo, licitações, etc - é colocada em jornais de baixa circulação. Isto é, poucas pessoas as leem.

- Empresários amigos do governo conseguem publicidade oficial farta.

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- Rudy Ulloa, ex-office boy e ex-chofer dos Kirchners, transformou-se em magnata da mídia no sul do país e lançou revista "Atitude", que na capa deixa claro seu posicionamento com seu slogan: "uma revista que não é independente"

- Cristina Kirchner disse há duas semanas que era vítima de um "fuzilamento midiático"

- A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) denunciou várias vezes a deterioração da liberdade de imprensa na Argentina durante o governo dos Kirchners.

- Na quinta-feira foi realizada uma blitz sem precedentes em uma empresa jornalística argentina. Nesse dia, quase 200 inspetores da Administração Federal de Ingressos Públicos (Afip), o Fisco argentino, entraram no edifício do jornal "Clarín", com o argumento de buscar documentos da área tributária. A operação foi interpretada pela mídia e os partidos da oposição como uma "intimidação" do governo contra o "Clarín", com o qual está em pé de guerra há mais de um ano.

- Na sexta-feira a presidente Cristina rechaçou as críticas feitas pela oposição. "Não houve maior liberdade para falar de um governo que durante o governo da primeira presidente mulher da Argentina", disse sobre si própria, em terceira pessoa.

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MOTIVOS PARA O SILÊNCIO PRESIDENCIAL - Em on, assessores da presidência argumentavam que o então presidente Kirchner não estava obrigado a conversar com toda a mídia e que estava "ocupado" governando

- Em off, na época, seus assessores argumentavam que tudo ia bem ao governo, e não precisavam de grande parte da imprensa. Com o surgimento da crise, o governo começa a 'conversar' mais.

- Os analistas políticos consideram que Kirchner tinha medo de enfrentar a mídia estrangeira, que é independente do governo local

- Os analistas consideram que Kirchner é "provinciano" e "autoritário", e que não sente a menor necessidade de ter uma relação fluida com a imprensa

- Similares argumentos são aplicados costumeiramente sobre o comportamento da sucessora de Kirchner, sua esposa e atual presidente Cristina Kirchner

PECULIARIDADES DA RELAÇÃO COM A IMPRENSA - O governo que se anuncia como o mais "progressista" desde a volta da democracia, em 1983, é o que menos fala com a imprensa

- Os ministros e secretários temem ser vistos sozinhos conversando com jornalistas da mídia nacional

- Existiria uma lista negra de jornalistas nacionais e estrangeiros em alguns ministérios, afirmam fontes

Carlos Menem (1989-99): Ele e seus ministros tinham uma overdose de relações 'informais' com a imprensa (jogavam tênis, golfe e jantavam com os jornalistas). Não havia uma política de comunicação definida. Os ministros e secretários falavam para puxar o tapete dos colegas. Seu secretário pessoal, seu secretário-geral da presidência e o porta-voz lutavam entre si para definir entrevistas. Menem até designou um assessor especial para atender a mídia estrangeira, cujo trabalho nunca foi além de um almoço com os correspondentes internacionais.

Fernando De la Rúa (1999-2001): O presidentes e seus ministros atendiam a imprensa local ocasionalmente. De la Rúa, no entanto, esquivava a mídia estrangeira. Só concedeu uma única coletiva aos correspondentes. Seu chanceler nunca deu entrevistas aos jornalistas brasileiros, apesar do peso do Brasil no Mercosul. A secretária de Indústria também evitava a mídia brasileira. Não possuía política de comunicação.

Eduardo Duhalde (2002-2003): No meio da pior crise da História argentina, não teve política de comunicação. Ele e seus ministros conversavam com freqüência com a mídia nacional, mas tinham escasso contato com a mídia estrangeira.

QUEM FALA É PUNIDO O lugar: um boteco poeirento do bairro de San Cristóbal, de classe média baixa, a mais de 40 quarteirões da Casa Rosada, o palácio presidencial. Os personagens: um importante secretário do governo de Néstor Kirchner e um jornalista de um jornal visto pelo kirchnersimo como "opositor".

A trama: o secretário, consultado pelo jornalista sobre a possibilidade de conversar sobre determinado assunto da área econômica, combinou de encontrá-lo em um bairro totalmente fora da área frequentada pelos integrantes do governo, em um bar ignoto.

Tudo indicava que a conversa - com toda essa preparação cinematográfica - renderia uma revelação impactante. Mas, o secretário, apavorado de ser visto, mesmo nesse recôndito estabelecimento - e com medo de que as informações em off pudessem dar uma pista sobre sua identidade - proporcionou uma breve coletânea de informações light, nada comprometedoras. "Foi uma perda de tempo", lamentou o jornalista, quando me relatou o caso.

Isso ilustra o pânico que até os altos integrantes do governo Kirchner sentem ao imaginar que o ex-presidente possa desconfiar que estão conversando com a imprensa.

Quem é descoberto falando demais, é punido com o ostracismo ou a demissão. Esse é o denominado "estilo K", direto, sem papas na língua, categórico e implacável.

Kirchner prefere comunicar por meio da tribuna, com seus discursos. Em diversas ocasiões afirmou que prefere o diálogo direto com o povo, sem intermediários (os jornalistas).

Os analistas consideram que a vantagem dessa estratégia é que Kirchner evita eventuais perguntas incômodas da imprensa.

"São caudilhos da província de Santa Cruz, acostumados a círculos pequenos. Ora, Santa Cruz tem 200 mil habitantes! Quando chegaram ao poder, sentiram-se inseguro com a mídia da capital. Era demais para eles, que possuem complexo de inferioridade. São desconfiados, mais ainda dos jornalistas, os quais encaram como adversários", diz Carmen De Carlos, correspondente do "ABC" de Madri.

O governo carece de uma política de comunicação. O Secretário de Meios de Comunicação, Enrique Albistur, apesar do cargo, não fala com a imprensa, mas encarrega-se da administração dos meios de comunicação estatais e publicidade oficial.

Miguel Núñez, que foi porta-voz dos Kirchners durante mais de seis anos e que deixou o cargo há menos de um mês, era oficialmente o "vocero" (porta-voz). Mas, raramente aparecia. Seus críticos o definiam como "o porta-voz mais mudo da História".

Há poucos anos, durante uma visita de Kirchner à Nova York, jornalistas argentinos que cobriram a viagem indicaram que o próprio Núñez, com ironia, comentou-lhes que sua função é - paradoxalmente - a de "manter os jornalistas afastados do presidente".

DESMAIO E DEMISSÃO No início deste ano o jornalista Nelson Castro foi demitido da Rádio del Plata. Castro, que há 16 anos realizava seu programa "Pontos de Vista", foi removido de seu posto pelas denúncias que fez sobre supostas sobretaxas - um total de US$ 50 milhões - aplicadas pela empresa de engenharia Electroingeniería na Patagônia, região onde os Kirchners, possuem seu feudo político. Os analistas afirmam que trata-se de um caso de "censura encoberta".

A rádio foi comprada em novembro de 2008 pela própria Electroingeniería, empresa famosa por seus vínculos de amizade com o casal Kirchner. Na ocasião, Castro perguntou aos novos diretores como reagiriam se houvesse, por acaso, alguma denúncia de corrupção contra a empresa. Os diretores asseguraram que contaria com total liberdade de imprensa. A promessa durou três meses.

No início do ano, Castro, que também é médico, causou irritação no casal Kirchner quando declarou que a súbita licença da presidente por motivos de saúde "chamava a atenção".

Na ocasião, a Casa Rosada anunciou que Cristina havia tido uma lipotimia (pré-desmaio) e que por isso ficaria 48 de repouso (depois ampliado para cinco dias). "Uma lipotimia só precisa duas horas de descanso. Muito estranho", disse Castro, que suspeita de um caso de "depressão".

Os analistas indicam que Castro já estava na mira dos Kirchners desde essas declarações. A denúncia sobre a Electroingeniería teria sido a gota d'água.

Castro declarou que o caso é uma demonstração de "que este é o verdadeiro Kirchner. O Kirchner intolerante".

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