Foto do(a) blog

Os Hermanos

Um bicentenário com nostalgia do centenário

 

PUBLICIDADE

Por arielpalacios
Atualização:

O presidente Marcelo T. de Alvear (1922-28), inaugurando um monumento nos parques de Palermo, nos anos 20. A Argentina vivia anos dourados que durariam outras cinco décadas.

Rebeliões, contra-rebeliões e lutas internas começaram a pipocar em todo o território (o assunto é tremendamente mais complexo, mas tento resumi-lo desta forma...mais detalhes, neste artigo da Wikipedia, aqui. No caso de livros, recomendo os de Félix Luna e os de Luis Alberto Romero sobre o assunto).

"Cabildo aberto de 1810", do pintor Juan Manuel Blanes (1830-1901)

Por este motivo, a Argentina conta com duas datas nacionais: o 25 de maio e o 9 de julho. As duas datas são homenageadas com duas avenidas em Buenos Aires: a avenida de Mayo (que vai da Casa Rosada à Praça do Congresso) e a 9 de Julio (que atravessa a avenida de Mayo pela metade e corta o centro em duas partes, ligando os bairros de Constitución e Retiro).

PUBLICIDADE

Há 200 anos, quando Buenos Aires efervescia com a Revolução de Maio, a área que pouco tempo depois se transformaria na Argentina, era a menor economia da América do Sul, atrás das outras colônias espanholas na região, e do próprio Brasil, que dois anos antes havia recebido a família real portuguesa.

Publicidade

Um século depois, isto é, há 100 anos, quando a Argentina celebrou o centenário da 'Revolução de Maio' de 1810 - o início do processo da independência - o país não se parecia em nada ao que havia sido dez décadas antes.

Em 1910 a Argentina estava no ponto culminante de seu prestígio internacional. Na época, a Argentina representava 50% de todo o PIB latino-americano; Buenos Aires - cujas ruas eram decoradas com estátuas importadas da França (além de edifícios inteiros, tijolos por tijolo) - era chamada de "a Paris da América do Sul" e o próprio país - que recebia uma intensa migração europeia - era considerado um "pedaço da Europa" incrustado na América do Sul.

Escritores em todo o mundo consideravam que a Argentina - na época o décimo PIB per capita mundial - rivalizaria em pouco tempo com os EUA. Os argentinos exibiam exuberante otimismo e acreditavam que o país estava destinado a um futuro brilhante.

"Em 1910, a pátria festejou seu centenário. Era a celebração de um povo que havia encontrado seu lugar na História", sustenta o ex-embaixador em Paris, Juan Archibaldo Lanús, em seu livro "Aquele Apogeu". Segundo ele, em apenas uma geração o país passou de ser o cenário dos últimos "malones" (ataques de tribos indígenas) a ter o primeiro metrô da América Latina.

Duas semanas antes do centenário, o jornal "La Prensa" estampava uma pergunta em seu editorial: "como poderia fracassar um país dotado de tal sorte?".

Publicidade

Iconografia do centenário mostrava um país confiante no futuro

Em 1910 a cidade de Buenos Aires tinha mais teatros que Paris. "Uma grande cidade da Europa", categorizou o presidente francês Georges Clemenceau. Mas a melhor definição talvez seja a do brilhantemente cínico escritor francês André Malraux, que a definiu como "a capital de um império imaginário". 

Buenos Aires...em 2010! Assim era imaginada em 1910 pelo ilustrador Arturo Eusevi, na revista PBT

Em 1916 o país teve as primeiras eleições com voto secreto e universal. No entanto, em 1930 iniciou uma série de golpes de Estado, complementados com crises financeiras sem paralelo na região, trocas abruptas de políticas econômicas.

Caso a presidente Cristina Kirchner complete seu mandato, esta será a primeira vez que isso ocorre desde a sequência Yrigoyen-Alvear. Neste caso, serão dois presidentes diferentes em sequência: Néstor Kirchner e Cristina Kirchner (embora com a peculiaridade de serem marido e mulher que se sucederam).

Publicidade

E sequer os militares conseguiram completar os mandatos que previam (exceto o general Jorge Rafael Videla, que concluiu os cinco anos previstos... até os militares derrubaram seus próprios colegas com outros golpes).

O cartunista Daniel Paz, do "Página 12", ironiza sobre as crises e as oportunidades da Argentina

INSTABILIDADE - A socióloga Beatriz Sarlo disse ao Estado que a Argentina, nos últimos 100 anos, sofreu "a marca maldita dos golpes de Estado, que começaram em 1930 e foram até 1976. Metade desse século vivemos em constante instabilidade política".

Os economistas argentinos não conseguem consenso sobre o momento do início da decadência. Alguns sustentam que foi em 1930, com a quebra da institucionalidade; outros acreditam que a culpa foi do governo do intervencionista Juan Domingo Perón; enquanto que um terceiro grupo afirma que foi a política econômica caótica da ditadura de 1976-83. Mas, já em 1969 o país causava estupefação para o economista russo-americano Simon Kuznets, que tentou enquadrar o imprevisível país: "existem três tipos de países no mundo. Os normais, o Japão...e a Argentina!". (a frase é erroneamente atribuída ao amigo de Kuznets, Paul Samuelson).

Kuznets, ao receber o Nobel de Economia, em 1971, das mãos do rei Gustavo VI Adolfo da Suécia   

Publicidade

Desde meados dos 90, dezenas de milhares partiram por causa do avanço da pobreza. Calcula-se, extraoficialmente, que 1 milhão de argentinos - quase todos mão de obra qualificada - deixaram o país nos últimos 30 anos.

O ex-vice-ministro da Economia, Orlando Ferreres, me disse que ao contrário do Brasil, a Argentina "careceu de estratégias de longo prazo". Segundo o economista, por este motivo o país vive um cenário no qual até a carne - símbolo nacional - possui uma presença cada vez maior do Brasil: "frigoríficos argentinos são comprados por empresas brasileiras, com respaldo do BNDES, organismo que invejamos, sem similar na Argentina".

O sociólogo Carlos Fara me comentou que "há 50 anos o Brasil era um país rural, sem indústrias, enquanto que a Argentina já contava com uma classe média de segunda geração, além de prêmios Nobel. O Brasil cresce de forma persistente e representa hoje para a Argentina o sonho daquilo que podia ter sido e não foi".

Borges, um ácido analista da sociedade argentina, desenhado por Alberto Breccia

O analista, e muitos outros, tentam explicar o que aconteceu para que ocorresse este "grande fracasso nacional", que tornou a Argentina um dos poucos países que passou do primeiro mundo ao terceiro em poucas décadas.

Publicidade

"Como pode ser que uma nação como esta, beneficiada com invejáveis recursos naturais e humanos, não consiga reverter este lento e melancólico declínio em direção à insignificância?". Esta foi a pergunta feita há poucos anos por um dos principais estudiosos sobre o país, Nicholas Shumway, da Universidade de Austin, Texas.

Shumway tem a teoria de que existe um fator normalmente esquecido: "a peculiar mentalidade divisória". O think tank americano considera que o país fracassou na criação de um marco ideológico de união e consenso, caso contrário do Brasil.

O falecido escritor Jorge Luis Borges, costumava dizer que os argentinos eram "brilhantes individualmente, mas coletivamente são um fracasso".  Além de individualistas incorrigíveis, segundo Borges (e outros analistas, ensaístas e historiadores) também padeceriam de outro problema, afirma o sociólogo Guillermo O'Donell: "temos um enorme talento autodestrutivo, somos o espetáculo mundial da auto-destruição".

No entanto... a crise de 2001-2002 também serviu para que as novas gerações repensassem o país construído (ou destruído) pela geração dos pais. Jovens empresários argentinos, na contra-mão das duas gerações anteriores, investem e apostam no país. De quebra, conseguem fazer que, apesar dos trancos e barrancos, a economia funcione (e, levando em conta que o país teve seis graves crises econômicas desde 1975, a capacidade de recuperação é - no mínimo - invejável).

A cultura está sendo reativada de forma ininterrupta desde a crise da virada do século. O cinema argentino - apesar da crise econômica - se vira e lança filmes todos os anos que competem em festivais internacionais, tal como o recente - "El secreto de sus ojos", de Juan José Campanella, vencedor, entre outros prêmios, do Oscar de melhor filme estrangeiro (cenas, aqui).

Publicidade

O tango passou por uma renovação e um revival. Longe do estilo tradicional, o tango novo é embalado ao ritmo do techno, como o Bajofondo e outras orquestras. Entre os expoentes está o músico Gustavo Santaolalla (algo de sua obra, aqui), que além de criar um novo estilo e respaldar os jovens músicos, resgata os veteranos compositores (como em "Café de los maestros", aqui).

Ou, ainda, revisões sobre o tango tradicional, como o caso da carismática Dolores Solá. Neste link, cantando "Que querés con ese loro". Aqui.

O teatro Colón exibe sua restauração. Na foto, a platéia, os camarotes e no forro do teto, a pintura de Raúl Soldi (mais sobre o pintor, aqui)

DA DECADÊNCIA À GLÓRIA RECUPERADA: O COLÓN REABRE SUAS PORTAS EM GRANDE ESTILO

Para esta festa, o Colón receberá 2.400 convidados especiais, entre elas a nata da intelectualidade argentina, representantes da classe política, o empresariado, além do corpo diplomático em peso. O governo, embora convidado, anunciou semana passada que não comparecerá. O motivo está explicado no post anterior, este aqui.

Publicidade

O Teatro Colón estava em estado lamentável.  Arquitetos que me guiaram em uma visita às obras indicaram que o estado do teatro era "terrível", já que as instalações elétricas antes da reforma eram "antiquadas" (algumas, com mais de meio século de instalação) e a falta de sistema de segurança colocavam o edifício em risco de incêndio. Goteiras estavam espalhadas em diversas áreas do edifício, enquanto que diversos camarins estavam inundados por encanamentos estourados.

A apresentação da reinauguração -o primeiro ato da ópera "La Bohème", de Giacomo Puccini, e trechos do balé "O lago dos cisnes", de Pyotr Illyich Tchaikosvky - será transmitida pelo canal de TV Trece para todo o país. Além disso, 60 mil portenhos poderão ver a apresentação do lado de fora do teatro, em imensos telões colocados estrategicamente sobre a avenida 9 de Julio.

Na noite de gala da reinauguração, a Orquestra Filarmônica de Buenos Aires será dirigida pelo maestro Javier Logioia Orbe.

Ao longo deste ano o Colón contará com figuras de peso mundial como os maestros Zubin Metha (que regerá a Filarmônica de Munique) e Daniel Barenboim (com a orquestra e coro do Scalla de Milão).

O violoncelista Yo Yo Ma, acompanhado pela pianista Kathryn Scott abrirá o ciclo internacional no dia 11 de junho. No total, as estrelas estrangeiras realizarão oito concertos até dezembro.

Publicidade

O ciclo nacional, com a orquestra do Colón, começa sua temporada de 18 concertos no dia 3 de junho.

OBRAS - As obras implicaram no trabalho de uma equipe de 1.500 pessoas que reformaram 60 mil metros quadrados do Colón. No total, o governo da cidade de Buenos Aires desembolsou US$ 90 milhões para realizar a maior reforma da História do teatro, que ao longo de 102 anos de vida, só havia passado por duas reciclagens parciais.

As obras iniciaram em 2001, com um plano. Em 2003 tudo foi modificado, e as obras foram retomadas com um novo plano (o atual).

Em 2006, perante a polêmica sobre o lerdo andamento das obras, o teatro foi fechado para o público, dando início ao intensivo plano de recuperação que mantiveria a essência arquitetônica do edifício. As obras inicialmente estavam previstas para concluir em 2008, centenário do Colón.

Mas, perante a impossibilidade de cumprir com os prazos - confrontos políticos, basicamente - as celebrações do centenário do teatro foram realizadas no Luna Park, espaço destinado a lutas de boxe e musicais, sem acústica adequada (é impossível qualquer apresentação ali sem microfones).

Furioso, o maestro Daniel Barenboim, contratado para a ocasião, disparou: "a esses responsáveis e irresponsáveis, deixem de lado suas ambições, que são de pouco valor comparados com aquilo que o Colón representa".

O prefeito Maurício Macri decidiu colocar uma nova data: 2010, ano do bicentenário da Revolução de Maio.

ACÚSTICA - O Instituto Takenaka do Japão indica que  o Colón ocupa o primeiro posto no ranking mundial de acústica lírica (seguido pela Semperoper de Dresden e o Scalla de Milão). Estrelas da ópera mundial sabiam que passar pelo Colón era uma prova de fogo, já que qualquer erro era perfeitamente ouvido pelo exigente público.

Por esse motivo, os restauradores realizaram as obras com cautela, para evitar modificações na qualidade do som. O procedimento adotado foi o de "despir" (remover todos os elementos) a sala de ópera em diversas etapas para medir, a cada uma, o impacto acústico.

Isto é, removiam as poltronas e mediam a acústica; retiravam o tecido que cobria os camarotes, e a acústica era novamente medida.

Por este motivo, os restauradores tentaram manter o mesmo revestimento têxtil de cortinas e poltronas (e o tipo de recheio destas), o tipo de assoalho, entre outros, para evitar qualquer alteração que pudesse modificar a famosa acústica do teatro.

"O Colón possui uma das acústicas mais perfeitas do Universo", afirma o filósofo e ensaísta Marcos Aguinis, ex-ministro de Cultura e autor do livro "O atroz encanto de ser argentino". Segundo ele, "o Colón, metaforicamente, é um Stradivarius de incalculável valor".

PERFIL: Ariel Palacios fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996.

Em 2009 "Os Hermanos" recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).

Gustavo Chacra (Nova York): http://blogs.estadao.com.br/gustavo-chacra/ 

Patricia Campos Mello (Washington) - http://blogs.estadao.com.br/patricia-campos-mello/ 

Claudia Trevisan (Pequim) - http://blogs.estadao.com.br/claudia-trevisan/ 

Adriana Carranca (Pelo Mundo) - http://blogs.estadao.com.br/adriana-carranca/ 

.................................................................................................................. Comentários racistas, chauvinistas, sexistas ou que coloquem a sociedade de um país como superior a de outro país, não serão publicados. Tampouco serão publicados ataques pessoais entre leitores nem ocuparemos espaço com observações ortográficas relativas aos comentários dos participantes. Propaganda eleitoral ou partidária também será eliminada dos comentários. Além disso, não publicaremos palavras ou expressões de baixo calão (a não ser por questões etimológicas, como background antropológico).

............................................................................................................... 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.