Vocês devem ter lido nos últimos dias que as forças de Bashar al Assad estariam apoiando o ISIS, também conhecido como Grupo Estado Islâmico ou Daesh. Esta informação faz parte de uma iniciativa de relações públicas (propaganda) de uma federação de grupos rebeldes ultra-extremistas ligados à Al Qaeda (Frente Nusrah) denominado Jaysh el Fatah e apoiados pela Arábia Saudita, Turquia e Qatar, com o aval parcial dos EUA.
Qual o argumento desta teoria?
Segundo esta teoria, Assad estaria facilitando a chegada do ISIS a Aleppo para enfrentar a Al Qaeda e também teria permitido que esta organização não enfrentasse resistência em Palmyra. Como diz o New York Times, estas acusações foram feitas pelos grupos "rebeldes" (Al Qaeda é chamada de rebelde quando luta contra Assad e de terrorista quando luta contra aliados dos EUA) e pela Embaixada dos EUA na Síria (que cita os mesmos rebeldes), sem apresentar provas.
Por que é esta acusação não é verdadeira?
Mas é fácil desmontar esta teoria de alianças entre Assad e o ISIS. Antes de continuar, que fique claro, o regime de Assad cometeu sim crimes contra a humanidade na Guerra da Síria, de acordo com as Nações Unidas e outros relatos independentes. Isso não significa que seja aliado do ISIS. Não é. É inimigo.
Explique o caso de Aleppo
Comecemos por Aleppo. Em primeiro lugar, o regime de Assad ainda controla a maior parte da segunda mais importante cidade da Síria com seu Exército e o apoio de milícias aliadas, conhecidas como shabiha, muitas delas cristãs. Qual seria o interesse de Assad em trazer um inimigo poderoso como o ISIS para Aleppo, uma cidade fundamental para a manutenção do regime?
E o caso de Palmyra
No caso de Palmyra, é ainda mais bizarro. Dezenas ou mesmo centenas de soldados e oficiais sírios foram incinerados ou decapitados pelo ISIS quando a cidade foi tomada. Simplesmente, o regime perdeu esta batalha para o ISIS porque tem dificuldades em lutar em áreas onde não conta com o apoio do Hezbollah e do Irã, conforme já mostrei aqui no blog. O grupo libanês e o regime iraniano possuem interesse apenas na região fronteiriça com o Líbano, que vai de Damasco, passando por Homs e as montanhas Qalamoun, onde junto com Assad lutam contra o ISIS, e chegando à Costa Mediterrânea.
Qual o papel do ditador da Arábia Saudita, o rei Salman, nesta campanha de propaganda?
O que mudou, agora, é regime saudita, que adota a e difunde a ideologia extremista wahabbita, a mesma do ISIS (e também da Al Qaeda, Boko Haram, Taleban e Al Shabab), perseguindo minorias religiosas e com Apartheid contra as mulheres - judeu seria esmagado até a morte se ousasse circular de quipá pelas ruas de Riad, apesar da "parceria" geopolítica entre a ditadura saudita e Israel.
O novo ditador saudita, chamado Rei Salman (no mundo árabe, com raras exceções rei é equivalente a ditador), é o que se chama de "falcão" nos EUA e decidiu se envolver abertamente em conflitos no Oriente Médio. No Yemen, promove uma guerra na qual indiretamente apoia a Al Qaeda na Península Arábica. Na Síria, diretamente, apoia uma coalizão com a presença da Al Qaeda. Em Washington, usa o seu lobby e sua máquina de propaganda para tentar evitar um acordo entre os EUA e o Irã na questão nuclear.
Tem algum lado bom na Guerra da Síria?
Insisto, na Guerra da Síria, absolutamente todos os lados são ruins - o ISIS, os "rebeldes" apoiados pelos sauditas e turcos, incluindo a Al Qaeda, Assad, o Hezbollah, o Irã, a Arábia Saudita e todos os atores envolvidos no conflito. Vamos parar de ser ingênuos. Existe uma campanha da Arábia Saudita para tentar convencer Obama a intervir militarmente contra Assad na Síria e enfraquecer o Irã. O resultado seria um regime comandado pela Al Qaeda ou pelo ISIS em Damasco, a poucos quilômetros do Líbano e de Israel, as únicas duas democracias do Oriente Médio, sendo uma delas com identidade cristã e a outra, judaica, embora ambas multireligiosas.
E Obama?
O presidente americano é mais sofisticado do que isso para cair no conto do lobby saudita e de seus aliados na capital americana. Pelo menos por enquanto.
Guga Chacra, comentarista de política internacional do Estadão e do programa Globo News Em Pauta em Nova York, é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Columbia. Já foi correspondente do jornal O Estado de S. Paulo no Oriente Médio e em NY. No passado, trabalhou como correspondente da Folha em Buenos Aires