Em entrevista ao New York Times, nos anos 1990, Boutros-Ghali disse que ele e sua mulher brigavam em árabe, discutiam negócios em inglês e faziam as pazes em francês. Este casal formado por um cristão do Cairo e uma judia de Alexandria seria quase impensável nos dias de hoje.
Neto de um ex-premiê do Egito, no começo do século 20, Boutros-Gali se formou na Universidade do Cairo, fez mestrado na Science Po na França, doutorado na Universidade de Paris e ainda estudou na Universidade Columbia de Nova York. Foi, ao longo da carreira, fundamental nas negociações de paz entre Egito e Israel, embora fosse um árduo defensor dos palestinos. Na ONU, bateu de frente com o governo de Bill Clinton e acabou sendo vetado, pelos EUA, para concorrer a um segundo mandato como secretário-geral.
O Egito de Boutros-Ghali, que poderia ser uma potência regional, começou a desmoronar com a chegada de Nasser ao poder. A ideologia estatizante de identidade arabista não tolerava mais o multiculturalismo mercantil levantino do qual faziam parte Boutros-Ghali e sua mulher. Eles ainda conseguiram sobreviver, pois Boutros-Ghali integra uma das mais influentes família egípcias. Mas era algo raro. E os judeus, como Leia Maria, foram quase todos expulsos por Nasser.
Insisto e insistirei quantas vezes for necessário - o Egito, assim como a Síria, começaram a decair quando deixaram de ser levantinos.
Guga Chacra, blogueiro de política internacional do Estadão e comentarista do programa Globo News Em Pauta em Nova York, é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Columbia. Já foi correspondente do jornal O Estado de S. Paulo no Oriente Médio e em NY. No passado, trabalhou como correspondente da Folha em Buenos Aires