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De Beirute a Nova York

Uma viagem ao Curdistão

Diyarbakir pode parecer uma cidade comum da Anatólia, a parte asiática da Turquia. Os moradores são todos cidadãos turcos, falam turco, vão a escolas turcas e votam nas eleições turcas. A diferença é que, na verdade, eles são curdos, um povo sem território que se espalha entre Turquia, Irã, Iraque e Síria. Formam a maior nação sem Estado do mundo. Só na Turquia, há cerca de 20 milhões de curdos - mais do que o triplo de palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

Por gustavochacra
Atualização:

"Os turcos estão nos obrigando a esquecer que também somos curdos", disse Hassan, alfaiate e ativista, que concordou em tirar fotos, mas pediu que seu sobrenome não fosse publicado. Seu amigo afirma que o serviço secreto turco costuma punir curdos que falem com a imprensa estrangeira.

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Os curdos sentem-se perseguidos dentro da Turquia. Em 1984, a organização radical curda PKK, considerada terrorista pelos EUA e pela Turquia, lançou uma luta armada para tentar criar um Estado independente. Seu líder era Abdullah Ocalan, uma espécie de Yasser Arafat do Curdistão.

Com o conflito, o governo da Turquia intensificou a repressão. No final dos anos 80 e na maior parte da década seguinte, Diyarbakir, considerada a capital do Curdistão, tornou-se o centro de um conflito que deixou 37 mil mortos. Os curdos foram proibidos até de conversar em seu idioma nas ruas.

Nos últimos anos, eles conquistaram mais direitos, embora ainda estejam longe dos outros turcos. Os curdos tiveram permissão para publicar jornais em curdo e até abrir uma TV. Mas o curdo não pode ser ensinado nas escolas, nem falado no Parlamento em Ancara.

Ahmet Turk, que apesar do nome é o principal líder do partido curdo DTP, legal na Turquia, fez um discurso em sua língua nativa para os outros deputados no mês passado. Imediatamente, o sinal das TVs que exibiam sua fala foi cortado e Turk foi repreendido.

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"É um absurdo que nós não possamos falar nossa língua nas escolas", disse Ayshe, mulher de Hassan, em uma das dezenas de casas de chá que se espalham pela cidade velha de Diyarbakir.

Durante a entrevista, um grupo de mulheres entrou na casa de chá entoando gritos de "(O premiê turco, Recep Tayyip) Erdogan não é nada, Ocalan é o nosso líder".

"Ele ainda é líder dos curdos", afirma o guia de turismo curdo Mehmet Nasip Onen. "Graças ao PKK, o restante do mundo sabe quem são os curdos hoje", completou outro homem. "Ocalan foi muito importante para os curdos. Os turcos sabem disso e o mantêm numa prisão solitária subterrânea em uma ilha", acrescenta Hassan (mais informações nesta página).

Pressionado em parte pela União Europeia, que impõe como uma das condições para o ingresso da Turquia no bloco a resolução das questões curda, armênia e cipriota, Erdogan vem tentando conquistar os curdos desde que chegou ao poder.

Nas ruas de Diyarbakir, há cartazes com sua foto por todos os lados, rivalizando com os do partido curdo DTP - que, por exigência da lei, são escritos em turco. Por ser religioso, o primeiro-ministro é um pouco mais respeitado do que os outros líderes turcos na região do Curdistão, que é conservadora.

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"O governo acredita que a promoção do desenvolvimento econômico no sudeste da Turquia ajudará no combate ao terrorismo do PKK", diz Wolfango Piccolo, especialista em Turquia da consultoria de risco político Eurásia. "Não podemos esquecer ainda que parte da moderação do governo Erdogan em relação ao curdos está ligada às eleições municipais do dia 29. O AKP ( partido do premiê, de orientação religiosa) quer controlar cidades que hoje estão nas mãos do DTP."

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Mesmo com o enfraquecimento do PKK nesta década, militantes ainda atuam a partir do Curdistão iraquiano. A região hoje é quase um Estado autônomo, cujo governo tem sede em Irbil. No ano passado, a Turquia chegou a lançar uma operação contra campos de treinamento do PKK no território iraquiano.

Mas nos últimos meses a Turquia vem se aproximando do governo curdo no norte do Iraque. Uma missão diplomática foi aberta em Irbil. O objetivo é convencer, com investimentos econômicos, o presidente do Curdistão iraquiano, Masud Barzani, a afastar-se dos guerrilheiros.

"Duran Kalkan, um dos líderes do PKK no Iraque, já reclama do isolamento da organização", afirma o analista político turco Mehmet Birand. "Os ataques turcos criaram uma sensação de insegurança entre 4 mil membros do PKK que se refugiam no Iraque. Para complicar, a liderança do grupo está dividida", completa Piccolo.

Os curdos do Iraque, que no passado foram vítimas de armas químicas de Saddam Hussein, são os que hoje vivem em melhor situação. Possuem boas relações com os EUA e poços de petróleo.

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No Irã, os curdos sofrem restrições do governo. Na Síria, não podem expressar sua identidade livremente. Muitos têm de adotar nomes árabes.

Apesar de todos se considerarem curdos, há diferenças entre os membros desta etnia, dependendo do país ou da região onde vivem.

Os do Iraque e da Síria falam árabe, além de usar o alfabeto árabe, enquanto os da Turquia usam o alfabeto latino e têm como segunda língua o curdo. As religiões também são distintas. Iraquianos, sírios e turcos são principalmente sunitas, enquanto os iranianos, xiitas. Há ainda uma minoria cristã, judaica e os yazidi, que vivem perto de Mossul, no Iraque.

"A maioria dos curdos da Turquia não quer criar um Estado independente. O objetivo é que sua identidade seja reconhecida pelo Estado turco e eles possam desfrutar dos mesmos padrões socioeconômicos das outras regiões da Turquia", diz Piccoli.

Sua análise é compartilhada pelos curdos de Diyarbakir. Ayshe diz que "a Turquia é composta por turcos e curdos". "Nós queremos apenas ter os mesmos direitos que eles", diz. "Mais ou menos, como os bascos e os catalães na Espanha, que possuem uma relativa autonomia", diz o vendedor de tapetes Cavit Satici.

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A maior expressão da identidade curda ocorrerá nesta semana, com o festival do Nowruz, que marca a chegada da primavera. Às margens do Rio Tigre, os curdos cantam e dançam. Por muitos anos, eles foram proibidos de organizar esta festa. Receberam permissão recentemente. Mas, em 2007, 200 curdos foram presos. Eles aproveitam o festival para carregar cartazes de Ocalan e para exigir mais direitos. Ahmet Metin, um turco de Istambul que tem um hotel em Diyarbakir, diz que vêm curdos de todas as partes do mundo. "Gosto deles, mas odeio o PKK porque são terroristas", afirmou. Oçalan ainda é reverenciado

Abdullah Ocalan é o herói dos curdos da Turquia. Nos anos 80, ele fundou o PKK e deu início a uma guerra civil no Curdistão turco que culminou na morte de milhares de pessoas. Perseguido, passou por Síria, Rússia e Itália, além de países do continente africano, antes de ser preso numa ilha-prisão no Mar de Marmara, perto de Istambul. Todos os outros prisioneiros foram removidos para outros locais. A segurança dele é feita por mais de mil soldados. O site Freedom for Ocalan (www.freedom-for-ocalan.com) é censurado na Turquia. Hoje, muitos jovens turcos ateiam fogo ao próprio corpo em solidariedade a Ocalan.

Reportagem minha publicada na edição impressa do jornal O Estado de São Paulo

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