Com certeza, a presença dos negros, vindos do Haiti, República Dominicana, Colômbia e Venezuela, entre outros, criou mais oportunidades para os chilenos "exercitarem" esse traço de sua cultura. Mas ele já estava lá. Assim como os argentinos, muitos chilenos -- não todos, e nem sei se a maioria -- cultivam uma certa identidade "inglesa", ou em geral europeia. Isso em razão de imigração de ingleses, alemães, italianos, etc., da hierarquia de valores nascida da colonização e da comparação com o Brasil.
Um almirante argentino na virada do século 19 para o 20 cunhou a expressão "China negra", para se referir ao Brasil. Para compensar o fato de serem menores que o Brasil, Argentina e Chile procuraram construir para si um critério de superioridade baseado na cor da pele. De novo: não são todos os argentinos e chilenos, e nem sei se são a maioria. Mas isso está presente. Como está presente o preconceito racial dentro do próprio Brasil, com seu imenso contingente de negros.
A imigração é um tema nesta eleição de domingo, que foi explicitado com o nebuloso "atentado" ocorrido na quarta-feira. O senador Fulvio Rossi, por sinal neto de italianos, e que defende a seleção dos imigrantes e a expulsão imediata dos que cometam crimes, diz ter sido esfaqueado no estômago e golpeado na cabeça por um homem negro que teria gritado, com sotaque colombiano: "Nós te advertimos". Ele dizia que vinha sofrendo ameaças.
A polícia anunciou não ter suspeitos. Não havia câmeras no local, um depósito de material de campanha na casa do pai falecido de Rossi. O senador, que é médico, foi ferido superficialmente no estômago. E continuou internado no hospital em Iquique, no norte do Chile, mesmo depois de ter recebido alta, na quinta-feira, dando a impressão de que queria capitalizar ao máximo o incidente, nas vésperas das eleições. Eu estava com um jornalista chileno no momento em que saiu a notícia. "Eu trabalhei com ele. É um mitômano", me disse o jornalista.
Neste sábado, o filho do senador disse que o "suspeito" trabalhou na campanha de seu pai, e agora trabalha na de seu adversário, Jorge Soria, candidato ao Senado por um partido regional. Rossi atribuiu o ataque ao crime organizado no norte do Chile, afirmando que metade das armas está nas mãos de chilenos e a outra metade, de colombianos. O embaixador da Colômbia criticou as declarações do senador, que segundo ele criam "uma inconveniente atmosfera de estigmatização".
No norte do Chile, 12% da população já é composta por imigrantes. Relatório da Organização Internacional do Trabalho, publicado em maio, afirma que o Chile foi o país da América Latina cuja proporção de imigrantes mais cresceu entre 2010 e 2015: 4,9% ao ano; seguido pelo México, com 4,2%; Brasil, com 3,8%, e Equador, com 3,6%. No período, seu número aumentou em 100 mil, de 369.436, para 469.436, ou 27%.
É resultado da prosperidade chilena. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a renda média chilena atingiu US$ 14.310 em 2016, atrás apenas da uruguaia, US$ 17.250; e na frente da argentina, US$ 14.060, e da brasileira, US$ 10.020. Pelo critério do poder de compra, a renda per capita chilena supera a uruguaia. As taxas de escolarização do Chile são as mais altas da América Latina, equivalentes às da Austrália e superiores às da Grã-Bretanha. A expectativa de vida chilena, 80 anos, fica atrás apenas do Canadá nas Américas:82. A do Brasil é 75 anos e a dos Estados Unidos, 79.
Antes no Partido Socialista, da presidente Michelle Bachelet, hoje Rossi é independente, mas apoia o candidato dela, Alejandro Guillier. Mas suas visões sobre a imigração se aproximam mais do candidato da oposição e provável vitorioso no primeiro e no segundo turno, neste domingo e no dia 17 de dezembro, respectivamente: Sebastián Piñera, um bilionário de centro-direita, que foi presidente entre 2010 e 2014, também defende a seleção dos imigrantes, segundo os "interesses do Chile". Piñera reconhece que a imigração interessa ao Chile para ajudar a custear seu debilitado sistema previdenciário, diante da queda na natalidade. Mas promete retomar seu plano Fronteira Norte Segura, argumentando que o Chile tem quase mil quilômetros de fronteira com o Peru e a Bolívia, "os dois principais produtores de coca do mundo".