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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|O exemplo indígena da Constituinte chilena

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O Chile é o país mais avançado da América Latina, e um dos três do Hemisfério Sul, ao lado da Austrália e da Nova Zelândia. "Avançado" é diferente de "perfeito". Ao se lançar no aperfeiçoamento de suas leis, os chilenos deram mais uma lição: elegeram presidente da Convenção Constitucional (assembleia constituinte) uma líder indígena, Elisa Loncón, que ademais é uma linguista respeitada.

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A economia chilena está integrada ao mundo por 26 acordos de livre comércio, incluindo os Estados Unidos, a União Europeia, o Canadá, Japão, Coreia do Sul, Austrália e o Transpacífico. Além de próspero, tem os melhores indicadores sociais da região. O êxito na resposta à pandemia, coroado por uma das vacinações mais rápidas do mundo, foi mais uma prova da qualidade da gestão do Estado chileno.

Mas o regime previdenciário exclusivamente privado, a rede pública de saúde insatisfatória e o ensino superior pago, incluindo nas universidades públicas, geram tensões e exclusões. Daí a onda de protestos de 2019, que levou ao plebiscito de outubro do ano passado, no qual 79% dos chilenos votaram a favor da eleição de uma assembleia para escrever uma nova Constituição, que substituirá a de 1980, produto da ditadura militar.

O grande desafio da constituinte é equilibrar as mudanças sociais necessárias com a preservação dos traços institucionais que têm trazido avanços contínuos ao Chile. Os trabalhos coincidirão com as eleições presidenciais e parlamentares de novembro, o que aumenta o risco de contágio dos debates sobre a nova Constituição pelos interesses político-eleitorais.

Independentemente do êxito da assembleia, o simbolismo da eleição de Elisa Loncón reverbera pelas Américas, e elas precisam ouvir a mensagem que vem dos povos originais. O Canadá, um dos países mais avançados do mundo, descobriu nas últimas semanas covas anônimas nas quais foram enterradas quase mil crianças indígenas.

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Com verbas do governo canadense, 150 mil crianças indígenas foram enviadas a internatos religiosos entre 1883 e 1996, num esforço para apagar sua cultura, e substituí-la por ensinamentos "cristãos". Em instituições superlotadas, as crianças sofreram de doenças e maus tratos. Os trabalhos de buscas das covas não-marcadas estão só começando. Estima-se que mais de 10 mil cadáveres de crianças serão encontrados.

Padres e monges abusavam sexualmente das crianças, e fetos gerados pelos estupros eram incinerados. Freiras diziam às crianças que elas eram "pagãs" e jamais seriam salvas, lembram sobreviventes.

Desses internatos, 70% eram católicos e 30%, protestantes. O governo canadense e a Igreja Unida do Canadá, a maior denominação protestante, já pediram perdão por esses crimes. Apesar de apelos do primeiro-ministro Justin Trudeau, o papa Francisco se recusou a fazer o mesmo.

Os EUA adotaram a mesma política ao longo de 150 anos, e calcula-se que centenas de milhares de crianças também tenham sido vítimas desses internamentos forçados. A secretária do Interior, Deb Haaland, de origem indígena, prometeu que o governo americano também realizará buscas nos terrenos dos antigos internatos.

As Américas têm uma imensa dívida com seus moradores originais, e consigo mesmas. Ignorar o conhecimento que eles têm da natureza representa uma perda econômica inestimável. Para ficar na especialidade de Elisa Loncón, a linguística, num trabalho publicado em 25 de janeiro de 1889 neste jornal, João Mendes de Almeida, então presidente da Sociedade dos Homens de Letras de São Paulo, mostrou o impressionante volume de  conhecimento contido nos nomes dos rios amazônicos, ao decodificá-los, sílaba por sílaba, do tupi.

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Se o Brasil tivesse programas científicos para pesquisar o conhecimento indígena da natureza, seria dono de muitas patentes de produtos industriais no mercado mundial. A Amazônia não seria vista como um problema, uma vulnerabilidade internacional, mas como a nossa maior riqueza.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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