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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|O fogo da indiferença

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O incêndio do Museu Nacional me transportou para um outro, que presenciei, em abril de 2003: o da Biblioteca Nacional Iraquiana. O de Bagdá foi intencional: uma explosão do ódio armazenado por muitos anos contra Saddam Hussein. O do Rio foi uma agressividade passiva: a indiferença, o egoísmo, a falta do sentimento público. No fundo, a mesma ausência.

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A Biblioteca de Bagdá era um dos mais ricos patrimônios culturais da humanidade, um acervo de 5 milhões de manuscritos, livros e microfilmes contando a história do berço da civilização.  O sólido prédio de concreto foi carbonizado pelo fogo ateado por saqueadores no dia 8/4/03, quando os americanos tomavam de assalto a capital. Entre as preciosidades perdidas, estava um exemplar do Alcorão escrito à mão por Ali, o quarto califa, sobrinho e genro do Profeta Maomé, no século 7.º. Os manuscritos remontavam a civilizações da Antiguidade, como a babilônica, suméria e assíria.

Por que alguns bagdalis destruíram essa preciosidade? Porque era uma representação de Saddam -- naquele momento foragido -- ao alcance de suas mãos, de sua sede de vingar toda a frustração causada por aquele monstro. No Brasil, colocam fogo em ônibus, picham monumentos, depredam equipamentos públicos. É a expressão do mesmo ódio. Não botam fogo em museus porque eles são desimportantes demais. Não merecem o esforço.

Não são só os museus que são tratados com indiferença, mas tudo o que é público. O brasileiro não mora em um país, em uma cidade. Ele mora no seu espaço privado. Isso se aplica aos funcionários públicos. O Estado é que serve a eles, e não o contrário. Aqueles que têm a intenção de trabalhar, de servir ao bem público, são hostilizados pelos colegas, porque perturbam o conforto de servir-se do Estado, em vez de servi-lo.

Repare que muitas pessoas que estão chorando a destruição do Museu Nacional são contra a prisão e inelegibilidade de corruptos, a reforma da Previdência, a privatização, o aprimoramento da gestão, o fim das regalias para funcionários públicos, enfim, a reforma do Estado para que ele exerça bem suas verdadeiras funções. O egoísmo vem sempre protegido pela ignorância seletiva, ou seja, pela hipocrisia.

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O incêndio do Museu Nacional do Rio é tão intencional quanto o da Biblioteca Nacional de Bagdá. A omissão é uma forma passiva de destruição. A falta de apreço pelo passado comum é a rejeição do bem coletivo, a reafirmação do valor supremo da cultura brasileira, em que a felicidade é uma experiência individual, não coletiva. O prazer reside em ficar melhor que o outro, não em todos estarem bem.

O fogo que queimou o acervo do Museu Nacional é o fogo da indiferença.

Clique aqui para ler minha reportagem sobre o incêndio da Biblioteca Nacional Iraquiana

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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