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VISÃO GLOBAL: A outra Primavera Árabe

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Por redacaointer
Atualização:

Tensões sobre terra, água e alimentos provam que levantes democráticos não têm só raiz política, mas também ambiental

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THOMAS L. FRIEDMAN THE NEW YORK TIMES

Não é curioso que o despertar árabe tenha começado na Tunísia com um vendedor de frutas que era intimidado pela polícia por não ter licença para vender comida no justo momento em que os preços mundiais dos alimentos atingiam altas recordes? E que tenha começado na Síria na aldeia meridional de Deraa, com agricultores que estavam exigindo o direito de comprar e vender terras perto da fronteira sem precisar obter permissão de policiais corruptos? E que tenha sido instigado no Iêmen - o primeiro país do mundo com a expectativa de ficar sem água - por uma lista de queixas contra um governo incompetente, entre as quais estava a de que autoridades de alto escalão estavam escavando poços de água em seus próprios quintais numa época em que o governo supostamente deveria estar impedindo a extração ilegal de água.

Como disse Abdelsalam Razzaz, ministro do abastecimento de água do novo governo do Iêmen, à agência Reuters: "As próprias autoridades têm sido tradicionalmente os perfuradores mais agressivos de poços. Quase todo ministro tem um poço perfurado em sua casa."

Todas essas tensões sobre terra, água e alimentos estão nos dizendo uma coisa: o despertar árabe não foi impulsionado somente por tensões políticas e econômicas, mas, com menor visibilidade, por tensões ambientais, populacionais e climáticas também.

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Tome-se o caso da Síria. "A agitação social atual na Síria é, no sentido mais direto, uma reação a um regime brutal e arcaico", escrevem Francesco Femia e Caitlin Werrell, num relatório para o seu Centro para o Clima e Segurança, em Washington.

"Entretanto, essa não é a história toda. Os últimos anos assistiram a algumas mudanças sociais, econômicas, ambientais e climáticas significativas na Síria que erodiram o contrato social entre cidadão e governo... Se a comunidade internacional e os futuros dirigentes políticos da Síria quiserem enfrentar e resolver os fatores que promovem a agitação no país, essas mudanças terão de ser mais bem exploradas." De 2006 a 2011, eles observam, até 60% da terra da Síria experimentou uma das piores secas e o mais severo conjunto de quebras de safra de sua história. "Segundo o Relatório de Avaliação Global sobre Redução de Risco de Desastres do ano passado, dos sírios mais vulneráveis dependentes da agricultura, em particular na província nordeste de Hassakeh (mas também no sul), 'quase 75% sofreram uma perda total de safra'. Pastores no nordeste perderam cerca de 85% de seus animais, afetando 1,3 milhão de pessoas." A ONU reportou que mais de 800 mil sírios tiveram seus animais dizimados por essas secas e muitos foram obrigados a se mudar para as cidades - aumentando os encargos de um governo já incompetente.

"Se as projeções climáticas permanecerem no seu curso atual, a estiagem no norte da África e no Oriente Médio vai se agravar progressivamente, e se presenciará, por fim, ciclo após ciclo de instabilidade, o que poderá originar futuras respostas autoritárias", argumenta Femia. "Há algumas maneiras de os EUA poderem ficar do lado certo da história no mundo árabe. Uma é apoiar entusiástica e firmemente os movimentos democráticos." A outra é investir em infraestruturas adaptáveis ao clima e melhorias na gestão da água - para tornar esses países mais flexíveis numa época de mudanças climáticas desastrosas.

Estiagem. Uma análise da Agência Nacional Oceânica e Atmosférica (NOOA) dos EUA, publicado em outubro do ano passado no Journal of Climate e citado no blog de Joe Romm, climateprogress.org, revelou que as secas no inverno no Oriente Médio - quando a região tradicionalmente recebe a maior parte de sua precipitação para reabastecer os aquíferos - estão aumentando e a mudança climática causada pelo homem é parcialmente responsável. "A magnitude e frequência da seca que ocorreu é grande demais para ser explicada pela variabilidade natural apenas", observou Martin Hoerling, do Laboratório de Pesquisa dos Sistemas da Terra da NOAA, autor principal do estudo.

Nafeez Mosaddeq Ahmed, direto- executivo do Instituto para Pesquisa e Desenvolvimento de Políticas em Londres, escrevendo no The Beirut Daily Star em fevereiro, assinalou que 12 dos 15 países mais carentes de água do mundo - Argélia, Líbia, Tunísia, Jordânia, Catar, Arábia Saudita, Iêmen, Oman, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Bahrein e Israel (incluindo territórios palestinos) - estão no Oriente Médio e, após três décadas de crescimento explosivo da população, estão "fadados a agravar drasticamente seu sofrimento. Embora as taxas de natalidade estejam caindo, um terço da população total tem menos de 15 anos de idade. Mais mulheres jovens estão chegando à idade reprodutiva, ou em breve estarão." Um estudo do Ministério da Defesa britânico, ele acrescenta, "projetou que até 2030 a população do Oriente Médio crescerá 132% - gerando um 'inchaço jovem' sem precedente".

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E haverá muito mais bocas para alimentar com menos água. Como observa Lester Brown, o presidente do Instituto de Políticas da Terra e autor de World on the Edge (O mundo em risco, em tradução livre), há 20 anos, usando a tecnologia de poços de petróleo, os sauditas perfuraram até um aquífero muito abaixo do deserto para produzir trigo irrigado, tornando-se autossuficientes. Agora, porém, quase toda a água acabou e a produção saudita de trigo também. De modo que os sauditas estão investindo em terras agrícolas na Etiópia e no Sudão, mas isso significa que eles tirarão mais água do Nilo, já vulnerável a qualquer elevação do nível do mar e intrusão de água salgada.

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"Se alguém perguntar quais são as reais ameaças a nossa segurança hoje", disse Brown, "no topo da lista estariam mudança climática, crescimento populacional, escassez de água, alta dos preços dos alimentos e o número de Estados falidos no mundo". "À medida que essa lista crescer, quantos Estados falidos serão precisos para termos uma civilização global falida e tudo começar a se desmanchar?" Felizmente, não chegaremos a isso. Mas devemos nos lembrar daquela citação atribuída a Leon Tolstoi: "Você pode não estar interessado na guerra, mas a guerra está interessada em você". Pois bem, você pode não estar interessado em mudança climática, mas a mudança climática está interessada em você.

Meus amigos, isso não é um embuste. Nós e os árabes precisamos imaginar - e depressa - novas maneiras de nos associarmos para mitigar as ameaças ambientais. Daqui a 20 anos, esse poderá ser o assunto exclusivo das conversas. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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