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'AL teve papel-chave na declaração de direitos humanos'

Especialista de Harvard aponta que Brasil defendeu posição mais enérgica contra a discriminação racial na Carta

Por Alexandre Gonçalves
Atualização:

Os países latino-americanos foram os principais responsáveis pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. A constatação não partiu de um jurista do Hemisfério Sul, mas de uma professora americana da Universidade Harvard. Mary Ann Glendon, atual embaixadora dos Estados Unidos junto à Santa Sé, é uma das maiores autoridades do mundo em direitos humanos internacionais. Em 2003, publicou um estudo na revista científica Harvard Human Rights Journal sobre o processo que terminou com a aprovação da declaração há 60 anos, em dezembro de 1948.   Desde então, aponta que, sem a influência latino-americana, a carta internacional não existiria ou seria muito diferente. Em entrevista ao Estado, ela fala sobre os debates que precederam a declaração e o papel da América Latina no debate contemporâneo sobre direitos humanos.   Na sua opinião, sem os esforços latino-americanos, existiria uma Declaração Universal dos Direitos do Homem? É muito difícil imaginar como eventos históricos terminariam na ausência deste ou daquele fator. Como escreveu o poeta T. S. Eliot, "o que poderia ser é uma abstração, permanecendo apenas como uma possibilidade perpétua em um mundo de especulação". O que podemos dizer com certeza é que os direitos humanos não estavam nos planos dos três grandes líderes - Churchill, Roosevelt e Stalin - quando deram instruções aos seus representantes para esboçar uma carta para as Nações Unidas. Foi graças à iniciativa de países menores que a proteção aos direitos humanos foi incluída, juntamente com a promoção da paz e da segurança, como um dos objetivos da organização. O grupo latino-americano e caribenho, que correspondia ao maior bloco de países da primeira Assembleia das Nações Unidas - cerca de 20 das 50 delegações! - colaborou ativamente neste sentido e defendeu a criação de uma "carta internacional de direitos".   Como a América Latina influenciou a Declaração Universal dos Direitos do Homem? A influência foi crucial tanto no estágio de esboço como nos debates que conduziram à aprovação da declaração na Assembleia Geral das Nações Unidas. Um dos principais modelos usados pelo comitê responsável pela primeira proposta foi o documento que depois se tornou a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada em Bogotá, em 1948. Quando alguém lê a carta das Nações Unidas hoje, percebe vários pontos onde a influência é evidente.   Os delegados latino-americanos também foram muito atuantes durante o outono de 1948, quando a declaração era debatida. Graças a Minerva Bernardino, da República Dominicana, uma menção especial foi feita no preâmbulo sobre a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Graças a Guy Perez Cisneros, de Cuba, uma referência à atenção especial às famílias foi inserida no artigo que trata sobre o direito a condições adequadas de vida. Sob influência do Equador, o artigo 9 foi aperfeiçoado para incluir proteção contra o exílio arbitrário. E, a pedido do México, um novo artigo foi incluído para prever a instituição conhecida na Espanha como amparo - um instrumento de recurso contra violações dos direitos fundamentais.   Você afirmou, em um trabalho recente, que a América Latina foi o crisol para a ideia de direitos humanos universais. Por quê? Um conjunto de fatores tornou o esboço de Bogotá especialmente atrativo como modelo para uma declaração destinada a todos os seres humanos em qualquer lugar do mundo. Por um lado, já era um documento transnacional, com pretensões de aplicação para um largo espectro de contextos políticos e culturais. Por outro, foi escrito em uma linguagem jurídica particular que dificilmente poderia ser definida como individualista (no sentido anglo-americano) ou coletivista (no sentido soviético). O seu modo de pensar sobre os direitos demonstrou ter um grande apelo em várias culturas.   Quais foram os principais movimentos e correntes que influenciaram a ação latino-americana? As raízes da tradição latino-americana em direitos humanos precedem o debate contemporâneo em séculos. É possível citar Bartolomeu de las Casas, que acreditava que todos os homens são irmãos porque Cristo deu a vida por todos eles. Mas é possível falar também da influência do pensamento iluminista e das ideias da Revolução Francesa em líderes como Simon Bolívar e Bernardo O'Higgins. A Declaração de Bogotá também sofreu notável influência das encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno nas quais os papas Leão 13 e Pio 11 meditaram sobre o pensamento iluminista e revolucionário e sobre questões sociais contemporâneas segundo a luz das escrituras cristãs.   Qual foi o papel do Brasil na aprovação da carta? Na primeira conferência das Nações Unidas, o Brasil foi um dos países que defendeu (com sucesso) uma posição mais enérgica contra a discriminação racial na carta. Quando a Declaração Universal dos Direitos do Homem era debatida, a delegação brasileira propôs (e depois retirou) uma proposta para incluir no artigo 1º uma referência à criação do homem a imagem e semelhança de Deus. No encontro final, em 10 de dezembro de 1948, o brasileiro Belarmino de Athayde elogiou a declaração no seu discurso. Afirmou que a autoridade moral do texto era resultado de uma ampla cooperação e que não representava o ponto de vista particular de algumas pessoas ou de um sistema filosófico concreto.   Na sua opinião, qual é a importância da declaração hoje? A Declaração Universal dos Direitos do Homem é um "documento base", a constituição, por assim dizer, do movimento contemporâneo internacional pelos direitos humanos. Há 60 anos tem sido o ponto de encontro para movimentos que tentam direcionar os holofotes da opinião pública sobre abusos que são sistematicamente escondidos ou ignorados. Tem sido o modelo para a maior parte das cartas de direitos no mundo. E continua o principal ponto de referência para discussões transnacionais sobre liberdade e dignidade humana.   Quais as principais ameaças aos direitos humanos? Quando olhamos para a declaração hoje, podemos ver que onde a ideia dos direitos humanos mais mostrou sua força, mais intensa tornou-se a batalha para capturar seu poder e utilizá-lo para diversos fins, nem sempre de acordo com a dignidade humana. Com o passar do tempo, a declaração tornou-se parecida com a bíblia - no sentido de que é muito citada, mas pouco lida. A abordagem mais comum é a do self-service, em que nações e grupos de interesse promovem os direitos que defendem e ignoram os que julgam inconvenientes. A declaração tornou-se mais um monumento para ser venerado a uma respeitosa distância do que um documento vivo para cada nova geração.   Na sua opinião, quais as principais contribuições que a América Latina pode dar hoje aos debates sobre direitos humanos? Por um lado, a América Latina pode ajudar a responder às críticas feitas comumente pelos piores violadores dos direitos humanos de que a declaração foi pensada para impor um conjunto de valores "ocidentais" para o resto do mundo. Como o delegado brasileiro destacou no dia 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi produto da colaboração de diversas culturas e baseou-se na premissa de que nós todos somos membros da mesma família humana. Além disso, não foi concebida para impor seja o que for de cima para baixo, mas para encorajar o desenvolvimento do respeito aos direitos humanos a partir da base. Esta foi a intenção de membros do comitê preparatório multicultural como Eleanor Roosevelt, o chileno Hernan Santa Cruz, amigo de Salvador Allende, o filósofo confuciano Peng-Chun Chang e o libanês Charles Malik, porta-voz da Liga Árabe. Eles consideraram que os princípios da declaração poderiam e deveriam ser vivificados nas diferentes culturas segundo uma diversidade legítima de caminhos. Eles vislumbraram um tipo de competição pela excelência na qual a compreensão dos direitos humanos avançaria pelo acúmulo das diversas experiências.   Outra área em que os latino-americanos, com suas tradições no direito civil, poderiam ser úteis é no combate à tendência de tratar a declaração como um menu em que alguém pode escolher só o que lhe apetece. A declaração tem uma estrutura integrada onde os direitos estão relacionados uns com os outros e com certos princípios fundamentais. Mas a Guerra Fria colocou uma cerca bem no meio desta estrutura, com algumas nações sublinhando as liberdades políticas e civis, enquanto outras enfatizavam as dimensões socioeconômicas. Daí nasceu o triste hábito, agora generalizado, de tratar a declaração como uma simples lista ou "enumeração" de direitos que não guardam qualquer relação entre si.   Na sua opinião, o relativismo contemporâneo é uma precondição ou uma ameaça à ideia de direitos humanos universais? Um certo tipo de relativismo penetrou tão profundamente a cultura contemporânea que homens e mulheres são cada vez mais incapazes de dizer porque certos valores devem ser defendidos ou porque determinada conduta deve ser condenada. Tudo torna-se uma questão de preferência. Esse tipo de relativismo é definitivamente uma ameaça, pois, se não existem verdades comuns para as quais pessoas de diferentes culturas podem apelar, não há como defender direitos universais.   Mas esse tipo de relativismo não deve ser confundido com a compreensão de que pode e deve existir espaço para que diferentes países experimentem caminhos diferentes para expressar e proteger os direitos fundamentais. Necessidades comuns não implicam homogeneidade, e a existência de diferentes caminhos para implementar os princípios não acarreta necessariamente relativismo sobre os próprios princípios. Além do mais, os direitos emergem da cultura; os direitos não podem se sustentar sem o suporte da cultura; e direitos, para serem efetivos, devem tornar-se parte do modo de vida de cada povo.   De fato, ignorar esta realidade seria incorrer no risco do imperialismo cultural. Seria cair na forma de pensar que caracteriza a cultura de muitos juristas e burocratas internacionais, de organizações não-governamentais - um tipo de "internacionalismo" insensível às particularidade locais e que insiste nas suas próprias interpretações dogmáticas dos direitos humanos.

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