Crise política aponta para esgotamento do modelo da democracia peruana, diz sociólogo

Carlos Ugo Santander acredita que o país precisa de uma resposta inteligente ante a crise para não correr riscos de autoritarismo

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

A crise política no Peru — que destituiu seu terceiro presidente em três anos — aponta para um esgotamento do desenho institucional do país, segundo o doutor em sociologia e professor associado na Universidade Federal de Goiás, Carlos Ugo Santander

O instrumento usado pelo Congresso para afastar o agora ex-presidente Martín Vizcarra foi o da “incapacidade moral”, um conceito ambíguo mas previsto na Constituição peruana — e a falta de uma manifestação sobre o assunto por parte da suprema corte do país, o Tribunal Constitucional, gerou incertezas.

Manifestantes entram em confronto com a polícia em protesto contra o governo do presidente interino Manuel Merino, na praça San Martin, em Lima, Peru Foto: ERNESTO BENAVIDES / AFP

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Manuel Merino, presidente do Congresso e o principal instigador da medida, assumiu o comando do governo em um clima de insatisfação popular. “Há saídas de curto e médio prazo”, aponta Santander, peruano com doutorado em política da América Latina concluído no Brasil.

“O país se encontra em uma situação bastante caótica, e o debate sobre se (a destituição) foi constitucional ou não é circular. Se continuarmos nele, pode haver uma espiral de descontentamento, e o país poderia até mesmo tomar uma trajetória de regressão autoritária.”

Já no primeiro dia da sua gestão, Manuel Merino prometeu ainda manter o processo eleitoral em curso: as eleições presidenciais e parlamentares estão marcadas para o dia 11 de abril de 2021. Sobre esses assuntos, Carlos Santander falou com o Estadão por telefone.

Qual é sua leitura sobre o afastamento do presidente Martín Vizcarra? O Congresso agiu dentro da lei, seguindo a Constituição?

É importante esclarecer que impeachment não é o mesmo que a vacância (que foi o que ocorreu). Esta é uma figura política do sistema parlamentarista. O impeachment tem conotação também jurídica. Vacância, de acordo com a Constituição, se apoia num quesito de incapacidade moral, que é um conceito muito ambíguo. Não há nenhuma precisão jurídica. Por isso que ela pode ser utilizada à vontade dos legisladores. Alguns denominam como golpe, alguns denominam como movimento legal.

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Como funciona esse instrumento?

É um processo basicamente político. Por exemplo, se o presidente mente, mas os votos no congresso não são suficientes para seu afastamento, ele pode permanecer no cargo. Se não, ele corre o risco de ser destituído. Vizcarra correu esse risco porque ele não tinha partido no congresso, não apresentou uma lista de parlamentares na última eleição. A fragmentação no Congresso levou a esse processo recente. 

O ex-presidente estava envolvido em processos de corrupção?

A questão é que os parlamentares podem esticar o conceito de “incapacidade moral” até qualquer ponto, praticamente. O que existe é uma opinião generalizada sobre seu envolvimento. Há indícios de que o presidente tinha se envolvido com esquemas de corrupção quando ele era governador. 

Qual o interesse do Congresso em tirar um presidente com tanta popularidade? 

A popularidade de Vizcarra ultimamente não estava tão alta, mas a opinião pública concordava que ele não poderia ser destituído num contexto de pandemia, seria uma atitude inoportuna, irresponsável. Mas os interesses são dos mais diversos: existem interesses de grupos empresariais, associados a universidades. Existe o interesse de adiar as eleições. Parlamentares procuram também reconstituir algumas prerrogativas que perderam, como a possibilidade de se reeleger.

Milhares de pessoas protestam em Lima por conta da insatisfação política sobre as mudanças no comando do Peru Foto: ERNESTO BENAVIDES / AFP

Quais são as consequências políticas dessa prerrogativa, especificamente?

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Quando um político não busca cooperação, tenta excluir os outros do jogo, os outros vão se vingar. É um grave erro (a medida de não reeleição). O Brasil tem um ditado muito interessante que é: “O Brasil não é para principiantes”.

O Peru, como qualquer outro país, qualquer governo ou nação, não pode estar na mão de principiantes. O ambiente democrático está vigente no Peru. O que demonstra a situação de conflito é o desenho institucional. Medidas populistas, como essa, não funcionam. Uma ciência política para pensar o governo sem evidências leva a consequências desastrosas como essa.

O que significa para o cenário político peruano um terceiro afastamento de presidente em tão pouco tempo? 

Significa uma questão muito clara: o desenho institucional que dá suporte à democracia se esgotou. Não a democracia, mas sim o desenho institucional, que não responde mais às demandas da população. Relações dos poderes executivo e legislativo, partidos políticos, o próprio judiciário, o sistema eleitoral… Não funciona. Chegou ao seu fim. Isso não se resolve com as próximas eleições, com o próximo presidente. Vão se reproduzir as mesmas problemas. A perspectiva é uma mudança de constituição. 

O país terá eleições em poucos meses, em abril de 2021. Como isso afeta o cenário até lá? 

Há saídas de curto e médio prazo. O país se encontra em uma situação bastante caótica, e o debate sobre se (a destituição) foi constitucional ou não é circular. Se continuarmos nele, pode haver uma espiral de descontentamento, e o país poderia até mesmo tomar uma trajetória de regressão autoritária. O novo presidente do congresso tem 58 processos judiciais. Do remédio, o pior. É preciso uma direção política clara do governo.

O processo eleitoral corre riscos?

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A expectativa é que as eleições aconteçam mesmo. No ambiente de pandemia, se torna uma eleição atípica, que pode levar a uma situação de autoritarismo.

Qual o significado dessas manifestações tão grandes em Lima?

São absolutamente legítimas, mostram um acúmulo de indignação. Temos no país uma situação de precariedade de empregos, indicadores sociais ruins, desigualdade cada vez mais crescente e aumento da pobreza. Até hoje, o governo está tentando encontrar alguma estabilidade.

Não sei se vai conseguir. Tenho a impressão de que se não se aponta uma medida mais concreta, podem acontecer consequências imprevisíveis, com movimentos violentos, atores autoritárias que vão tentar estabelecer a ordem à força. É preciso um passo muito maior do que apenas garantir as próximas eleições para fechar essa ferida. 

Uma constituinte?

Uma constituinte para redefinir todo esse conjunto. O sistema eleitoral gera desproporcionalidade. O voto presidencial leva a um sistema centrado nos candidatos, e não nos partidos. Isso reflete na democracia internas dos partidos, no financiamento de campanhas, papel das instituições que velam pelo processo. Houve uma disputa de competências sobre a “vacância” e o TC não consegue agir de ofício. É um problema do desenho. Mas é um processo de maturação. No Peru as pessoas estiveram adormecidas, por questões ideológicas. Isso impede mudanças mais substanciais.. Não é da noite para o dia, mas acredito que seria uma saída democrática. 

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