Massacres na Nicarágua acentuam divisão na esquerda latino-americana

Líderes populares como José Mujica condenam repressão e querem saída de Daniel Ortega, mas presidente nicaraguense tem apoio de Bolívia, Venezuela e Cuba

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Por Rodrigo Turrer
Atualização:

“Sinto que algo que foi um sonho se desvia, vira uma autocracia. E aqueles que foram revolucionários perderam hoje o senso de que, na vida, há momentos em que devem dizer: ‘Vou embora’”. Foi assim que o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, condenou a repressão do governo do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, aos manifestantes que pedem sua renúncia desde abril, que já deixou 354 mortos. 

As palavras de Mujica, proferidas no Congresso do Uruguai em 17 de julho, não são uma condenação qualquer. Representam uma ruptura de um antigo aliado. Mujica foi um apoiador incondicional da revolução sandinista comandada por Daniel Ortega nos anos 70, quando o próprio Mujica integrava uma guerrilha. Mujica também apoiou Ortega em 2006, quando ele decidiu se candidatar à presidência, após 16 anos fora do poder. 

Milhares de nicaraguenses marcharam até a catedral de Manágua em apoio aos bispos do país, considerados golpistas pelo governo de Daniel Ortega Foto: AP Photo/Alfredo Zuniga

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A atitude de Mujica não é unanimidade. Ao contrário. A crise na Nicarágua, que completará quatro meses na próxima semana, deixou a esquerda latino-americana dividida. “Esta crise é um divisor de águas, que vai separar a esquerda progressista daquela esquerda fisiológica, que defende os seus”, diz Daniel Buquet, professor de Ciência Política da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais, no México. “É impossível negar que Daniel Ortega, o revolucionário que libertou a Nicarágua de Somoza, se tornou igual a quem ele derrubou.”

Após as palavras de Mujica, o Senado uruguaio aprovou por unanimidade uma moção da Frente Ampla, o partido de Mujica, exigindo de Ortega “o fim imediato da violência contra o povo nicaraguense”. Além de Mujica, no Chile, o Partido Socialista, da ex-presidente Michelle Bachelet, manifestou, em nota, “indignação contra a violenta repressão” e defendeu o “restabelecimento da normalidade democrática” no país. “Na Venezuela e na Nicarágua não há socialismo, há o uso da retórica da esquerda do século 20 para encobrir uma oligarquia que rouba o Estado”, escreveu em sua conta no Twitter o ex-guerrilheiro colombiano e ex-prefeito de Bogotá, Gustavo Petro.

No Brasil, parte da esquerda já se posicionou contra os desmandos de Ortega, mas boa parte continua aferrada à defesa do sandinista. O principal formulador da Teologia da Libertação, Leonardo Boff, disse em uma carta que “estava perplexo com o fato de que um governo que levou à libertação da Nicarágua pudesse imitar as práticas do ex-ditador.” O PSOL e o PSTU criticaram a repressão do governo de Ortega.

Enquanto isso, PT e PCdoB evitam condenar o nicaraguense. Há duas semanas, o PT assinou o documento final do 24.º Encontro do Foro de São Paulo, que reúne partidos da esquerda latino-americana, realizado em Havana, que defendia o governo de Ortega. “Depois de tantos sucessos, sofremos uma contraofensiva neoliberal, imperialista, multifacetada, com guerra econômica, midiática, golpes judiciais e parlamentares, como ocorre na Nicarágua e ocorreu na Venezuela”, disse no encontro a secretária de Relações Internacionais do PT, Mônica Valente, secretária executiva do Foro.

O presidente Evo Morales, da Bolívia, e o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, também defendem Ortega do que chamam de “ofensiva imperialista” dos EUA. O ex-presidente cubano Raúl Castro expressou sua “solidariedade” à Nicarágua. Diosdado Cabello, número 2 do chavismo, respondeu publicamente a Mujica: “Todo mundo pode ir, seguiremos apoiando vocês[ORTEGA]. Ele (Mujica) está pensando em ser candidato novamente no Uruguai, os egos ficam doentes.”

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O racha provocado por Ortega evidenciou uma discordância na esquerda latino-americana que perdura por uma década. “Depois de se eleger, em 2006, Ortega se entregou às armadilhas de uma lógica que conduz forças progressistas a renunciar a certos princípios em nome da manutenção do poder”, afirma Aníbal Pérez-Liñan, professor de Ciência Política na Universidade de Pittsburgh, e autor de diversos estudos sobre as relações políticas na América Latina.

O processo de consolidação do poder de Ortega começa justamente com uma derrota. Depois de ter derrubado a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) teve de enfrentar o conflito com contrarrevolucionários bancados pelos EUA, os contras. A guerra civil arruinou o país. Nas eleições de 1990, os nicaraguenses elegeram Violeta Chamorro e permitiram o retorno da direita. 

O choque provocou intenso debate entre os sandinistas, que decidiram criar um partido centralizador, vertical, sob o comando de Ortega. “Ao longo de 11 anos de governo, Ortega criou uma enorme concentração de poder em suas mãos e nas de seus parentes, um processo que a esquerda latino-americana fez de conta que não via, mas que agora levou a um ponto de ruptura sem volta.”

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Enquanto parte da esquerda latino-americana brada que a situação na Nicarágua é um golpe – uma das provas seria a moção aprovada por 21 votos a 3 na Organização dos Estados Americanos (OEA), que recrimina a violência no país e pede a renúncia de Ortega –, outra parte enxerga na mobilização popular severamente reprimida por forças policiais e grupos armados pelo próprio governo uma reedição do que ocorreu em 1979.

“Ficaram para trás os tempos em que um cantor cubano louvava Ortega e a revolução, dizendo ‘Andará a Nicarágua, em seu caminho de glória, no espectro de Sandino, com Bolívar e Che, porque o mesmo caminho caminharam os três”, diz Dora Maria Téllez, ex-comandante da guerrilha sandinista e dissidente da FSLN. “Essa glória se desfez a partir do momento em que Ortega sequestrou os ideais da revolução e trocou o sandinismo pelo orteguismo”.

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