No Haiti, desabrigados são deixados na incerteza

Seis meses depois do terremoto a situação ainda é dramática

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Por Deborah Sontag
Atualização:

Centenas de famílias desabrigadas vivem precariamente numa fileira de frágeis barracos que ocupa o canteiro central da Route des Rails, uma avenida costeira de tráfego intenso na capital. Os veículos se agitam dia e noite pelo asfalto, soando buzinas, levantando poeira e cuspindo fumaça. Os moradores tentam se proteger instalando barreiras de pneus diante de seus barracos, mas ainda assim os carros os atingem, ferindo pessoas e às vezes provocando mortes. Raramente um veículo para no local para oferecer algum tipo de ajuda, e Judith Guillaume, 23 anos, se pergunta por quê. "Será que eles não têm alma, ou ao menos uma sugestão?" perguntou Judith, que cobre os narizes dos filhos com o vestido florido quando a fumaça do diesel fica espessa demais. Seis meses depois do terremoto que trouxe ao país o auxílio e a atenção de todo o mundo, o campo de desabrigados instalado no canteiro central se mistura aos atordoantes horrores da paisagem posterior ao desastre. Somente 28 mil dos 1,5 milhão de haitianos desabrigados pelo terremoto foram instalados em novos lares, e a região de Porto Príncipe continua a ser uma dramática representação da vida em meio às ruínas. Na representação está retratado um espectro de circunstâncias: acampamentos precários e abandonados; cidades de barracos planejadas, com sanitários, chuveiros e clínicas; bairros repletos de destroços onde os residentes retornaram tanto para casas intactas como para outras consideradas condenadas; e, aqui e ali, reluzentes abrigos novos ou território já preparado com escavadeiras para a construção de uma cidade do futuro. Mas o governo do Haiti tem se mostrado lento para tomar as difíceis decisões necessárias para avançar de um estado de emergência para um período de recuperação. Fraco antes do desastre e ainda mais enfraquecido por ele, o governo se viu sobrecarregado pelas complexidades logísticas de desafios como a remoção dos destroços e a identificação de lugares seguros para a realocação dos desabrigados. Em alguns casos, o governo também se mostrou politicamente relutante em se tratando, por exemplo, da criação de novas favelas ou de encorajar as pessoas a voltar para construções relativamente intactas quando ainda não se sabe se o chão sob seus pés pode tremer outra vez. Em outros, o governo assumiu o controle, mas viu-se enredado em dificuldades. Desde o início de maio, o presidente René Préval se dedicou pessoalmente, com minuciosa atenção, a devolver aproximadamente 11.600 haitianos acampados diante do Palácio Nacional ao bairro de Fort National. Mas, apesar de Fort Nacional ser atualmente o palco de uma frenética atividade de limpeza, nenhum abrigo provisório foi erguido no local até o momento. Em comparação, a Agência Adventista de Desenvolvimento e Auxílio, trabalhando diretamente com um prefeito presente e disponível no município de Carrefour, parte da região metropolitana de Porto Príncipe, já transferiu mais de 500 famílias de sua grande cidade de barracas para casas simples de pinheiro cujos alicerces de concreto incorporam destroços e entulho reciclados. "Apesar de ter perdido minha mãe no terremoto, sinto-me tão contente, tão confortável, tão sortuda por ter este lugar", disse Ketly Louis, 33 anos, recebendo os visitantes em sua nova casa construída no local onde a casa antiga desabou sobre a mãe dela. Apesar de reconhecerem os obstáculos representados por desafios como a propriedade da terra, as organizações internacionais que atuam no país criticam o governo por criar dificuldades adicionais. Atrasos significativos na liberação de suprimentos por parte das autoridades alfandegárias, por exemplo, retardam as iniciativas de recuperação, apesar de renderem ao governo um lucro substancial com as despesas de armazenamento. Com a chegada da temporada dos furacões e muitas tendas e barracos em necessidade de substituição ou reforço, alguns grupos humanitários se queixam do que descrevem como incapacidade do governo para articular uma estratégia clara de reassentamento. "Por todo lugar onde passo, as pessoas me perguntam, `quando sairemos deste campo?'", disse Julie Schindall, porta-voz do grupo humanitário Oxfam no Haiti. "E eu não sei o que responder. É preciso que haja comunicação para que saibamos como toda a questão dos campos de desabrigados será resolvida." Funcionários do governo haitiano e das Nações Unidas pedem paciência após o que dizem ser o maior desastre urbano da história moderna. Eles apontam para as conquistas obtidas na tarefa de proporcionar alimento, água e abrigo em caráter de emergência e na tentativa de evitar a fome, o êxodo e a violência. "Vale destacar aquilo que não ocorreu", disse Nigel Fisher, vice-representante especial do secretário geral da ONU no Haiti. "Não tivemos uma grande epidemia. Não houve um colapso completo na segurança." Além disso, eles destacam que o governo haitiano, enquanto tenta lidar com as pressões às vezes contraditórias dos doadores internacionais, vê-se prejudicado pela destruição e pelo estrago provocado em muitos dos ministérios, bem como a morte de um grande número de servidores públicos. "Duvido que haja na Terra um país capaz de ser plenamente funcional num intervalo tão curto após um desastre de tamanhas proporções", disse Imogen Wall, porta-voz do Gabinete da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários. Em Aceh, Indonésia, após o tsunami de 2004, que deixou o governo do país intacto, foram necessários mais de 2 anos para que a população desabrigada fosse retirada das barracas, disse Imogen. Fisher disse: "Em termos de velocidade, o avanço nunca é tão rápido quanto gostaríamos. Mas o andamento das coisas no Haiti corresponde ao que se espera de uma situação como essa." Tradução de Augusto Calil

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