A vitória de Joe Biden sobre Donald Trump não significa que a divisão da sociedade vai americana vai acabar e nem que o populismo vai perder terreno nos EUA. É esta a avaliação do cientista político Christopher Garman, diretor da consultoria Eurasia para as Américas. Ele diz que o fator mais importante para a derrota do presidente foi a má gestão da crise causada pela covid-19.
Garman sugere observar as causas do desencanto dos americanos com as instituições e a desigualdade de renda para compreender a força de Trump, que teve 70,6 milhões de votos - Biden teve 74,8 milhões. "Eu não vejo isso diminuindo, vejo isso aumentando. Na eleição dos EUA, não vejo sinais da queda da polarização".
O senhor acredita que a vitória de Joe Biden pode significar um ponto de referência em um mundo político polarizado?
Não vejo a vitória de Joe Biden como um sinal de mudança contra um mundo polarizado. Se olharmos o que leva à polarização política atual, nos EUA, em partes da Europa, na América Latina, ela deriva de um desencanto profundo de parte da população para com instituições do chamado establishment como o Judiciário, os partidos políticos, a imprensa. As raízes desse desencanto podem ser um pouco diferentes nas regiões.
Nos EUA e na Europa, está ligado ao aumento da desigualdade de renda, a nova e a velha economia, centros cosmopolitas e centros manufatureiros no interior dessas regiões. Na América Latina, é fruto de uma classe média frustrada por serviços públicos, revoltados com a corrupção. E eu não vejo isso diminuindo, vejo isso aumentando. Na eleição dos EUA, não vejo sinais da queda da polarização.
Qual sua a avaliação do cenário que fez Donald Trump ser eleito?
Enxergo um presidente que manejou muito mal a crise de covid-19. Ele perdeu por causa da covid, mas foi por um triz, a despeito do manejo mal e de qualquer métrica ruim da maior crise sanitária da nossa história recente, ele quase ganhou a reeleição. Isso significa que o papel dele é muito grande e ele teria facilmente ganhado se não fosse a covid. Não foi uma rejeição ao seu estilo divisivo de polarização. Acredito que essa é uma leitura errada. É claro que o Trump perdeu parte do eleitorado branco, nos subúrbios, que rejeitou seu estilo. Mas esse não é o movimento dominante da eleição. No fundo, o que aconteceu foi que 2% ou 3% dos eleitores em Estados-chaves teriam votado no Trump e voltaram no Biden por causa da covid-19.
Que país sai dessa eleição?
Os EUA saem dessa eleição com uma base republicana mais recrudescida, acreditando que foi injusta. E olho nos democratas e vejo uma base migrando mais para a esquerda. A identificação ideológica democrata, nos últimos dez anos, claramente é a de uma composição mais à esquerda. Vejo os polos se separando. E as raízes da revolta contra o sistema só podem aumentar com uma recuperação desigual da economia, enquanto setores de mais baixa renda tende a sofrer mais, e setores de mais alta escolaridade, menos. Não enxergo o populismo diminuindo com essa eleição. O ponto é: não se pode focar em quem ganhou, e sim nas raízes do desencanto que gera o fenômeno. E elas não estão diminuindo.
Olhando agora pelo lado das forças de oposição, foi um centrista moderado que venceu. Se tivéssemos o Bernie Sanders como candidato, provavelmente esse não seria o resultado final. Acredita que essa escolha, de um centrista, pode servir de modelo para outras oposições?
Esse é um contraponto interessante. É difícil dizer, mas de fato, se fosse o Bernie Sanders, o resultado poderia ser outro. Mas essa questão depende muito do sistema partidário. Uma candidatura centrista tem que ter um certo apelo a essa revolta da população. O Biden conseguiu porque é um sistema bipartidário, todos os eleitores do Bernie Sanders migraram ao Biden e ele deu um forte apoio. Então, o centrista tende a prevalecer. Mas em um sistema multipartidário, como o do Brasil, o desafio é chegar ao segundo turno.