30 anos depois, marcas da reunificação ainda dividem Alemanha

Processo de incorporação da Alemanha Oriental, comunista, à Alemanha Ocidental, com economia de mercado, durou menos de 12 meses, mas diferenças culturais e econômicas ainda ressoam na maior potência europeia 

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Por Paulo Beraldo
9 min de leitura

Fazia menos de 45 dias que o Muro de Berlim tinha sido derrubado quando o chanceler Helmut Kohl foi visitar o território da Alemanha Oriental pela primeira vez após a data que selou o fim na Guerra Fria. Era dezembro de 1989. Ao chegar a Dresden, Kohl foi ovacionado pelos vizinhos e fez um discurso emocionado prometendo dias melhores para os orientais - mais tarde, diria que foi o mais difícil de sua carreira. 

Naquele dia, o chanceler foi embora com uma imagem que não saiu de sua cabeça: a dos cartazes que pediam "uma Alemanha unificada", ideia que também o agradava. Era dado ali um importante passo rumo a um processo sem precedentes na história moderna: a transformação de dois países, com culturas, economias, sociedades e visões diferentes em um só. A separação de mais de 40 anos - iniciada a partir da derrota germânica na Segunda Guerra e a divisão do país entre os aliados vitoriosos - começava a ficar para trás. 

Não sem uma difícil costura geopolítica com França, Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética, que determinaram a divisão da Alemanha em 1945. Mas as marcas da região governada pelos comunistas por décadas resistiram à queda do Muro e à reunificação, que em outubro de 2020 completa 30 anos. 

Fogos de artifício para comemorar o dia da reunificação das duas Alemanhas, em 3 de outubro de 1990 Foto: Wolfgang Rattay/File Photo REUTERS

Nenhuma das principais empresas alemãs com cotação na Bolsa de Frankfurt, capital financeira do país, tem sede no lado oriental. Das 25 maiores cidades alemãs, apenas duas - Dresden e Leipzig - ficam no lado oriental. A exceção é a capital, Berlim.

Os cinco Estados que integram a Alemanha Oriental - Brandenburgo, Turíngia, Mecklemburgo-Pomerânia, Saxônia e Saxônia-Anhalt - representam um terço do território alemão, mas somam apenas 15 milhões de habitantes. O restante do país tem outros 65 milhões.

Um relatório publicado em setembro de 2020 mostrou que a renda per capita das regiões orientais, incluindo Berlim, representa atualmente 79,1% do restante do país. A porcentagem aumentou com o tempo: em 1990, o PIB per capita do leste era cerca de 37% do ocidental. O governo federal destina, através do Pacto de Solidariedade, recursos para tentar reduzir as disparidades entre os dois lados. Apesar disso, desde a reunificação, ao menos dois milhões de habitantes deixaram as regiões da Alemanha Oriental. 

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Helmut Kohl foi o chanceler alemão a ficar mais tempo no cargo no período pós-guerra Foto: REUTERS/Johannes Eisele

"A história da reunificação da Alemanha é uma história de ilusões e expectativas que não se cumpriram", afirma o pesquisador Dierk Hoffmann, do Instituto para a História Contemporânea de Munique. Hoffmann, que estuda o tema há anos, diz que as promessas de que tudo melhoraria em pouco tempo para os alemães orientais, chamados de ossies, falharam. 

Essa ainda é uma história aberta. Em 10 meses, tudo mudou para eles - politicamente, economicamente e socialmente. Houve muitas consequências psicológicas e mentais

Dierk Hoffmann

Expectativas frustradas levam a assassinato de condutor das privatizações 

"O desapontamento veio da ideia de que haveria industrialização e um boom. Mas a experiência foi de declínio econômico e desemprego", diz o pesquisador Andreas Rödder, professor da Universidade de Mainz e autor de um livro sobre a reunificação. Depois das privatizações, conduzidas pela agência Treuhand, muitas empresas fecharam por não conseguirem competir de igual para igual em um mercado global. 

Cerca de 8 mil empresas da Alemanha Oriental foram privatizadas e, no auge da crise, ao menos 2,5 milhões de alemães orientais perderam seus empregos. Outra mudança foi a da conversão monetária, meses antes da unificação total. O marco oriental passou a ter o mesmo valor do marco alemão.

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Com isso, o dinheiro de milhões de ossies passou a valer muito mais. O problema é que os produtos do leste passaram a ser indesejados - ficaram muito caros em comparação com os ocidentais, de melhor qualidade e mais variedade. 

No fim, isso representou a pá de cal para o fraco sistema industrial a Alemanha Oriental, que tinha uma economia cerca de quatro vezes inferior à Ocidental. Sem emprego, milhões de alemães orientais que integravam a elite do sistema político, eram funcionários do governo ou das empresas agora fechadas, além de militares, tiveram de assumir trabalhos abaixo de suas qualificações - ou ficaram sem atividade.

"Foi uma frustração particularmente no aspecto sócio-econômico e psicológico", diz Rödder. A raiva foi tanta que o condutor das privatizações - Detlev Rohwedder - foi assassinado a tiros em sua casa em 1991 por integrantes de um grupo terrorista.

Em uma carta deixada no local do crime, os autores do atentado destacavam a frustração de muitos alemães orientais com a forma como o processo estava sendo conduzido. 

A East Side Galery é um dos poucos pedaços do muro que não foram derrubados. Nele, 118 artistas de 21 países pintaram 106 quadros. Um dos mais icônicos é a representação do beijo de irmandade entre o estadista soviético Leonid Brejnev e Erich Honecker, líder da extinta República Democrática Alemã Foto: ADRIANA MOREIRA/ESTADAO

Foi o momento mais dramático de todo o processo de unificação. A Treuhand, chefiada por Rohwedder, era criticada por se preocupar mais em fechar empresas do que manter empregos. Protestos em sua sede eram quase diários. No fim das contas, 9 em cada 10 empresas orientais caíram nas mãos de ocidentais ou de investidores estrangeiros. 

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"O crime não parou o processo de nenhuma forma, mas mostrou que faltava uma comunicação e um debate público maior sobre os custos da unificação e de quem carregaria o seu peso", avalia Dierk Hoffmann. 

Mudanças bruscas e migração contínua

As mudanças trazidas pela reunificação da Alemanha foram bruscas. Logo após a queda do muro, no final de 1989, grupos civis organizados defendiam uma Alemanha Oriental soberana e independente, mas sem o governo comunista. Com o passar dos meses, uma revolução pacífica começou a ganhar força e milhares de pessoas passaram a lutar pela reunificação. "Isso marginalizou os antigos movimentos de oposição e os aliados do Oeste venceram", afirma Rödder. 

O desejo de viver no mundo capitalista, as memórias negativas da censura e da repressão, o medo da polícia secreta - a Stasi -, a falta de liberdade de expressão e de eleições livres foram os combustíveis desse processo. Estimativas indicam que a Stasi chegou a ter 170 mil integrantes e que um em cada cinco alemães orientais tiveram suas vidas espionadas pelo 'Ministério para a Segurança do Estado'. 

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Muitas pessoas ficaram felizes com o declínio da República Democrática Alemã e do regime socialista e gostaram da unificação, mas perderam o chão sob seus pés. Eles perderam tudo que tinham e, ao mesmo tempo, foram confrontados com essa ideia de total superioridade da Alemanha Ocidental e do modelo do Ocidente

Andreas Rödder

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Celebração em 9 de novembro de 1989, data da queda do Muro de Berlim Foto: HERBERT KNOSOWSKI/REUTERS

Reunificação incompleta? 

"A reunificação não foi um diálogo, foi uma integração da Alemanha Oriental na Alemanha Ocidental", afirma o pesquisador alemão Oliver Stuenkel, coordenador da pós-graduação em relações internacionais da FGV-SP. "A nova Alemanha reunificada seguia todas as regras e normas que já tinham sido vigentes na Alemanha Ocidental, o que criou a impressão entre muitos cidadãos da parte oriental de que estavam num novo país enquanto pouco mudou para a população da Alemanha Ocidental". 

Embora concorde com algumas críticas ao processo, como o pouco debate com a população do leste, Stuenkel ressalta que é preciso ter cautela ao dizer que a unificação está incompleta por conta das diferenças existentes e lembra que ambas as partes viveram experiências históricas, sociais e econômicas completamente distintas. 

Comemoração dos 25 anos da construção do Muro de Berlim na parte oriental da cidade em 1986 Foto: Arquivo Público da Alemanha
'A desigualdade regional dentro de países é normal, acontece na Itália, na França, na Inglaterra, no Brasil. A Alemanha Oriental sempre será diferente da Alemanha Ocidental simplesmente por questões que possivelmente nunca vão mudar

Oliver Stuenkel

Entre as questões, Stuenkel cita a densidade populacional mais baixa na parte oriental, a concentração industrial no lado ocidental e um processo contínuo de migração Leste-Oeste. "Precisamos aceitar que haverá diferenças mesmo daqui a 20, 30 anos, e que não necessariamente isso quer dizer que o processo de reunificação está incompleto". 

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Ressentimento e nostalgia da Alemanha Oriental 

Para Rödder, a forma como a reunificação foi conduzida criou um sentimento de inferioridade e de ressentimento para os ossies. Ele conta que até hoje é uma sensação que se retroalimenta, agora com a ascensão de políticos populistas de extrema-direita no lado oriental. É por isso que muitos sentem o que é chamado de 'Ostalgie' - nostalgia da vida na Alemanha comunista. Para usar uma expressão repetida por muitos alemães dos dois lados, o muro de Berlim caiu, mas ainda há "um muro na cabeça" que só o tempo irá derrubar. 

Na noite da queda do Muro, as pessoas abriam garrafas de bebida para celebrar o fim de um mundo que estava dividido desde o final da 2.ª Guerra Foto: Jockel Finck / AP

 

"Essa ideia de que o Oeste é o guardião do multiculturalismo, de que está sempre certo, e o sentimento de inferioridade em relação ao leste, é ainda um padrão de comportamento. O maior problema da reunificação é cultural e político", afirma Rödder. Uma pesquisa de 2019 revelou que quatro em cada dez moradores das regiões que integraram a Alemanha Oriental se veem primeiro como alemães orientais e, depois, como alemães. 

Para muitos ossies, a percepção foi de que seu país foi dominado pelo Ocidente e de que o que havia de melhor na Alemanha Oriental - a estabilidade, a educação em tempo integral, a boa estrutura de creches, a participação feminina no mercado de trabalho, o subsídio para aluguel e menos desigualdades sociais - foi ignorado. "A reunificação é uma discussão presente na sociedade alemã e ainda vai continuar por anos", concorda Hoffmann. 

Todos os anos alemães comemoram o aniversário da unificaçãoem 3 de outubro Foto: REUTERS/Fabrizio Bensch
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