Fazia menos de 45 dias que o Muro de Berlim tinha sido derrubado quando o chanceler Helmut Kohl foi visitar o território da Alemanha Oriental pela primeira vez após a data que selou o fim na Guerra Fria. Era dezembro de 1989. Ao chegar a Dresden, Kohl foi ovacionado pelos vizinhos e fez um discurso emocionado prometendo dias melhores para os orientais - mais tarde, diria que foi o mais difícil de sua carreira.
Naquele dia, o chanceler foi embora com uma imagem que não saiu de sua cabeça: a dos cartazes que pediam "uma Alemanha unificada", ideia que também o agradava. Era dado ali um importante passo rumo a um processo sem precedentes na história moderna: a transformação de dois países, com culturas, economias, sociedades e visões diferentes em um só. A separação de mais de 40 anos - iniciada a partir da derrota germânica na Segunda Guerra e a divisão do país entre os aliados vitoriosos - começava a ficar para trás.
Não sem uma difícil costura geopolítica com França, Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética, que determinaram a divisão da Alemanha em 1945. Mas as marcas da região governada pelos comunistas por décadas resistiram à queda do Muro e à reunificação, que em outubro de 2020 completa 30 anos.
Nenhuma das principais empresas alemãs com cotação na Bolsa de Frankfurt, capital financeira do país, tem sede no lado oriental. Das 25 maiores cidades alemãs, apenas duas - Dresden e Leipzig - ficam no lado oriental. A exceção é a capital, Berlim.
Os cinco Estados que integram a Alemanha Oriental - Brandenburgo, Turíngia, Mecklemburgo-Pomerânia, Saxônia e Saxônia-Anhalt - representam um terço do território alemão, mas somam apenas 15 milhões de habitantes. O restante do país tem outros 65 milhões.
Um relatório publicado em setembro de 2020 mostrou que a renda per capita das regiões orientais, incluindo Berlim, representa atualmente 79,1% do restante do país. A porcentagem aumentou com o tempo: em 1990, o PIB per capita do leste era cerca de 37% do ocidental. O governo federal destina, através do Pacto de Solidariedade, recursos para tentar reduzir as disparidades entre os dois lados. Apesar disso, desde a reunificação, ao menos dois milhões de habitantes deixaram as regiões da Alemanha Oriental.
"A história da reunificação da Alemanha é uma história de ilusões e expectativas que não se cumpriram", afirma o pesquisador Dierk Hoffmann, do Instituto para a História Contemporânea de Munique. Hoffmann, que estuda o tema há anos, diz que as promessas de que tudo melhoraria em pouco tempo para os alemães orientais, chamados de ossies, falharam.
Dierk Hoffmann
Expectativas frustradas levam a assassinato de condutor das privatizações
"O desapontamento veio da ideia de que haveria industrialização e um boom. Mas a experiência foi de declínio econômico e desemprego", diz o pesquisador Andreas Rödder, professor da Universidade de Mainz e autor de um livro sobre a reunificação. Depois das privatizações, conduzidas pela agência Treuhand, muitas empresas fecharam por não conseguirem competir de igual para igual em um mercado global.
Cerca de 8 mil empresas da Alemanha Oriental foram privatizadas e, no auge da crise, ao menos 2,5 milhões de alemães orientais perderam seus empregos. Outra mudança foi a da conversão monetária, meses antes da unificação total. O marco oriental passou a ter o mesmo valor do marco alemão.
Com isso, o dinheiro de milhões de ossies passou a valer muito mais. O problema é que os produtos do leste passaram a ser indesejados - ficaram muito caros em comparação com os ocidentais, de melhor qualidade e mais variedade.
No fim, isso representou a pá de cal para o fraco sistema industrial a Alemanha Oriental, que tinha uma economia cerca de quatro vezes inferior à Ocidental. Sem emprego, milhões de alemães orientais que integravam a elite do sistema político, eram funcionários do governo ou das empresas agora fechadas, além de militares, tiveram de assumir trabalhos abaixo de suas qualificações - ou ficaram sem atividade.
"Foi uma frustração particularmente no aspecto sócio-econômico e psicológico", diz Rödder. A raiva foi tanta que o condutor das privatizações - Detlev Rohwedder - foi assassinado a tiros em sua casa em 1991 por integrantes de um grupo terrorista.
Em uma carta deixada no local do crime, os autores do atentado destacavam a frustração de muitos alemães orientais com a forma como o processo estava sendo conduzido.
Foi o momento mais dramático de todo o processo de unificação. A Treuhand, chefiada por Rohwedder, era criticada por se preocupar mais em fechar empresas do que manter empregos. Protestos em sua sede eram quase diários. No fim das contas, 9 em cada 10 empresas orientais caíram nas mãos de ocidentais ou de investidores estrangeiros.
"O crime não parou o processo de nenhuma forma, mas mostrou que faltava uma comunicação e um debate público maior sobre os custos da unificação e de quem carregaria o seu peso", avalia Dierk Hoffmann.
Mudanças bruscas e migração contínua
As mudanças trazidas pela reunificação da Alemanha foram bruscas. Logo após a queda do muro, no final de 1989, grupos civis organizados defendiam uma Alemanha Oriental soberana e independente, mas sem o governo comunista. Com o passar dos meses, uma revolução pacífica começou a ganhar força e milhares de pessoas passaram a lutar pela reunificação. "Isso marginalizou os antigos movimentos de oposição e os aliados do Oeste venceram", afirma Rödder.
O desejo de viver no mundo capitalista, as memórias negativas da censura e da repressão, o medo da polícia secreta - a Stasi -, a falta de liberdade de expressão e de eleições livres foram os combustíveis desse processo. Estimativas indicam que a Stasi chegou a ter 170 mil integrantes e que um em cada cinco alemães orientais tiveram suas vidas espionadas pelo 'Ministério para a Segurança do Estado'.
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Andreas Rödder
Reunificação incompleta?
"A reunificação não foi um diálogo, foi uma integração da Alemanha Oriental na Alemanha Ocidental", afirma o pesquisador alemão Oliver Stuenkel, coordenador da pós-graduação em relações internacionais da FGV-SP. "A nova Alemanha reunificada seguia todas as regras e normas que já tinham sido vigentes na Alemanha Ocidental, o que criou a impressão entre muitos cidadãos da parte oriental de que estavam num novo país enquanto pouco mudou para a população da Alemanha Ocidental".
Embora concorde com algumas críticas ao processo, como o pouco debate com a população do leste, Stuenkel ressalta que é preciso ter cautela ao dizer que a unificação está incompleta por conta das diferenças existentes e lembra que ambas as partes viveram experiências históricas, sociais e econômicas completamente distintas.
Oliver Stuenkel
Entre as questões, Stuenkel cita a densidade populacional mais baixa na parte oriental, a concentração industrial no lado ocidental e um processo contínuo de migração Leste-Oeste. "Precisamos aceitar que haverá diferenças mesmo daqui a 20, 30 anos, e que não necessariamente isso quer dizer que o processo de reunificação está incompleto".
Ressentimento e nostalgia da Alemanha Oriental
Para Rödder, a forma como a reunificação foi conduzida criou um sentimento de inferioridade e de ressentimento para os ossies. Ele conta que até hoje é uma sensação que se retroalimenta, agora com a ascensão de políticos populistas de extrema-direita no lado oriental. É por isso que muitos sentem o que é chamado de 'Ostalgie' - nostalgia da vida na Alemanha comunista. Para usar uma expressão repetida por muitos alemães dos dois lados, o muro de Berlim caiu, mas ainda há "um muro na cabeça" que só o tempo irá derrubar.
"Essa ideia de que o Oeste é o guardião do multiculturalismo, de que está sempre certo, e o sentimento de inferioridade em relação ao leste, é ainda um padrão de comportamento. O maior problema da reunificação é cultural e político", afirma Rödder. Uma pesquisa de 2019 revelou que quatro em cada dez moradores das regiões que integraram a Alemanha Oriental se veem primeiro como alemães orientais e, depois, como alemães.
Para muitos ossies, a percepção foi de que seu país foi dominado pelo Ocidente e de que o que havia de melhor na Alemanha Oriental - a estabilidade, a educação em tempo integral, a boa estrutura de creches, a participação feminina no mercado de trabalho, o subsídio para aluguel e menos desigualdades sociais - foi ignorado. "A reunificação é uma discussão presente na sociedade alemã e ainda vai continuar por anos", concorda Hoffmann.