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A Alemanha está emperrada, e ninguém pode movê-la; leia a análise

Diante de uma série de desafios urgentes, como a desigualdade crescente, a infraestrutura arruinada e as mudanças climáticas, a eleição era uma chance para o país traçar um curso melhor e mais uniforme para o século 21

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Por Redação
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Os dezesseis anos da chanceler Angela Merkel no comando da Alemanha estão chegando ao fim. Ou não.

No domingo, os eleitores votaram e os resultados foram profundamente ambíguos. Nenhum partido obteve mais de 26% dos votos, a diferença entre os dois maiores partidos foi mínima e ninguém fez um grande avanço. O próximo governo ainda está um pouco distante: semanas, possivelmente meses de negociações de coalizão. Nesse ínterim, Merkel continuará liderando o país.

A bandeira alemã tremula em frente ao edifício do parlamento alemão, com o slogan: 'Ao povo alemão', em Berlim. Foto: AP/Markus Schreiber

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De muitas maneiras, é um resultado surpreendente. Ao longo de grandes períodos da campanha, o Partido Verde e a União Democrática Cristã estiveram à frente das pesquisas. Mas ambos caíram, com as campanhas vacilando porque seus candidatos não conseguiram convencer os eleitores de que eram sucessores viáveis. O Partido Social-Democrata, liderado por Olaf Scholz, então pareceu ascender na estima do eleitorado. Mas essa fase também passou. Não houve vitória decisiva.

Poderia ter sido um novo começo. Diante de uma série de desafios urgentes, como a desigualdade crescente, a infraestrutura arruinada e as mudanças climáticas, a eleição era uma chance para o país traçar um curso melhor e mais uniforme para o século 21. Em vez disso, a Alemanha está emperrada. Merkel pode estar de saída. Mas a Alemanha que ela cultivou – cuidadosa, cautelosa, avessa a grandes mudanças – continuará como antes.

A campanha nos deu as primeiras pistas. Normalmente, os candidatos ao mais alto cargo político procuram se distanciar o máximo possível dos titulares, para demonstrar a superioridade de sua visão para o país. Mas, na Alemanha, os principais candidatos competiam para imitar o estilo político centrista de Merkel. Afinal, esse estilo conquistara quatro vitórias eleitorais sucessivas.

Annalena Baerbock, a líder dos Verdes, tentou cultivar uma imagem de rigor e perícia semelhante à de Merkel. Frustrada por um escândalo de plágio e talvez pela aversão dos eleitores a alguém sem experiência no governo, ela logo perdeu a liderança na campanha e acabou levando seu partido a apenas 14% dos votos.

Armin Laschet, o sucessor de Merkel como líder dos democratas-cristãos, também tentou representar uma aura de competência e eficiência. Mas o esforço foi prejudicado por uma campanha errática e repleta de erros, sintetizada por seus comentários insensíveis durante uma visita às vítimas das enchentes no verão. Ao liderar o partido com 24%, presidiu um desempenho historicamente fraco. Ele, no entanto, ainda tentará forjar uma coalizão.

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Depois, temos Scholz. Embora candidato pelo Partido Social-Democrata, ele fez todos os esforços para se associar à chanceler, oferecendo-se, no lugar de Laschet, como a verdadeira opção de continuidade. Como vice-chanceler e ministro das finanças no governo Merkel, a manobra foi fácil: ele até adotou o gesto do “triângulo de poder”, marca registrada de Merkel. Funcionou, até certo ponto. Mas os quase 26% conquistados por seu partido não são suficientes para assegurar Scholz na chancelaria.

A convergência entre os candidatos vai além do estilo político. Após dezesseis anos de governo Merkel, o país se estabeleceu em um status quo aparentemente inabalável. Em termos econômicos, sociais e ecológicos, muito pouco vai mudar.

Primeiro, a economia. Com uma economia exportadora orientada para o comércio internacional – e outra, incomum para países industrializados, com um substancial setor manufatureiro – a Alemanha preza a estabilidade monetária acima de tudo. Qualquer coisa que possa afetar a competitividade internacional do país está fora de questão.

Além do mais, o freio da dívida, uma lei consolidada na constituição em 2009 que proíbe déficits orçamentários, impõe um limite rígido sobre o que é possível: haverá pouco espaço para um programa de investimento financiado por dívida ou grandes gastos em infraestrutura. Nesse cenário, não parece viável nenhuma reestruturação fundamental da economia.

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Na aparência, pelo menos, a economia é bem-sucedida. Mas os ganhos econômicos não foram compartilhados pela maioria. A desigualdade de renda aumentou – o 1% mais rico possui quase um quarto de toda a riqueza – e a Alemanha tem um dos maiores setores de baixa renda entre as nações da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Cerca de um em cada cinco trabalhadores, algo em torno de 8 milhões de pessoas, ganha menos de 11,40 euros, ou US $ 13,36, por hora.

O descontentamento social, portanto, está aumentando. Nos últimos dez anos houve uma renovação considerável das greves e o termo “sociedade de classes”, antes banido, voltou ao debate público. Espalhou-se pela sociedade uma raiva mais amorfa, que encontrou expressão no apoio ao partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha e às teorias da conspiração antivacina. Seriam necessárias mudanças profundas para lidar com as raízes de tal enfermidade. Nenhum dos principais partidos parece capaz de encarar a tarefa.

Da mesma forma, é improvável uma abordagem ambiciosa em relação ao clima. Em grande parte porque, pela primeira vez na história do pós-guerra, o governo da Alemanha provavelmente será formado por três partidos em coalizão. Liderados pelos democratas-cristãos ou pelos social-democratas, que buscarão formar um governo sem o outro, que incluirá os Verdes e o Partido dos Democratas Livres.

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Embora os Verdes tenham prometido “transformar o impossível em possível”, a presença dos Democratas Livres – um partido de empresários e liberais clássicos para os quais o mercado e as novas tecnologias devem resolver a crise climática, e não o Estado – colocará um freio acentuado nas políticas mais ambiciosas.

Ironicamente, devido à sua natureza cautelosa, a campanha se desenrolou em um cenário de múltiplas crises. A pandemia continua a causar enorme pressão no país, a Otan sofreu uma derrota histórica no Afeganistão e as inundações causadas pelas mudanças climáticas devastaram grandes extensões de terra neste verão e ceifaram quase 200 vidas.

Individualmente, cada problema já seria significativo. Juntos, eles equivalem a um grande confronto com o status quo. O momento – inclusive no nível europeu, em que o bloco exige uma liderança firme – demanda ousadia.

Mas isso não vai acontecer. Ao contrário, a nova era, presa a políticas consensuais e direcionamentos mornos, provavelmente trará mais do mesmo.

*Oliver Nachtwey (@onachtwey) é professor de sociologia na Universidade de Basileia e autor de Germany’s Hidden Crisis: Social Decline in the Heart of Europe. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU.

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