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É prêmio Nobel de Literatura. Escreve quinzenalmente.

Opinião|A ascensão do populismo e a 'retórica do desespero'

Há um momento em que todos, até mesmo aqueles que sabem como enfrentar as tempestades, cansam e desistem. São os períodos em que prevalece aquela 'retórica do desespero' a que todos estamos propensos

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Atualização:

O Crepúsculo da Democracia, o mais recente livro de Anne Applebaum, é bastante pessimista, pois prevê tanto para a Europa como para o restante do mundo um aumento do autoritarismo. Muitos países, assim como na Hungria e na Polônia – que ela conhece bem, porque é casada com um político polonês –, irão de uma deterioração da democracia para um sistema de controle de informação e manipulação das massas. O resultado é um regime que parece uma ditadura, ainda que tenha disputado eleições e conseguido uma maioria nos Parlamentos.

O livro ecoa distantemente A Traição dos Intelectuais, de Julien Benda, publicado na França em 1927, no qual ela encontra reminiscências de nossa época, principalmente no comportamento dos intelectuais e no crescimento do nacionalismo, que podem levar ao fracasso tentativas de integração como a União Europeia. O que, com muita razão, a autora afirma que seria uma verdadeira catástrofe para a Europa.

Manifestantes pró-Trump invadem o Congresso dos Estados Unidos durante uma sessão que certificariaos resultados das eleições presidenciais Foto: REUTERS / Shannon Stapleton

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O Crepúsculo da Democracia começa e termina com duas festas, uma realizada na Hungria e a outra, na Polônia. Esta última é mais positiva do que a primeira, mas, em ambas, a própria Anne Applebaum e seu marido alertam que as velhas amizades já não são tão sólidas como acreditavam antigamente. Estão mais subordinadas às diferenças políticas e, sobretudo, a favor dos governos da vez, que exigem de seus partidários uma adesão total, semelhante à das ditaduras. Este é um tema que conhecemos muito bem na América Latina, onde as divisões políticas costumam levar a melhor sobre as amizades, mesmo dentro das famílias.

Com muita razão, Anne Applebaum faz uma descrição meticulosa do Brexit, a separação da Inglaterra do mercado comum europeu – que, diga-se de passagem, foi uma ideia nascida na própria Inglaterra –, devido às voltas e reviravoltas demagógicas daquela caricatura de Churchill que é Boris Johnson; um dos líderes que, justificadamente, está muito mal nas análises consistentes da autora.

Outro líder que, de acordo com o livro, contribuiu para deteriorar a sólida adesão de seu país à democracia foi Trump. Durante seu governo, ele arrastou o Partido Republicano dos Estados Unidos para uma deriva frenética em direção ao autoritarismo por meio da mentira por todos os lados, e, em particular, no domínio da imprensa. Algo que, com muita razão, embora eu tenha minhas ressalvas, Anne Applebaum adverte que poderia significar uma gravíssima deterioração das reservas democráticas no mundo de hoje.

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Mesmo considerando sua análise do personagem de Trump muito justa, suspeito que a deterioração da democracia americana identificada por Anne Applebaum seja muito menos profunda do que ela destaca. Atualmente, sob o governo Biden e dos democratas, os EUA estão recuperando a liderança dos países livres do mundo, como mostram suas disputas com a China e a empobrecida Rússia de Vladimir Putin. Vejo nesse livro um certo estado de espírito abatido, ainda que, como em todos os livros da autora, o rigor das análises seja muito eficiente e as fontes, irrefutáveis.

Mas, até agora, e acho que li quase todos eles, os ensaios e os artigos de Anne Applebaum tinham sempre o poder de nos animar, principalmente aqueles de nós que compartilham suas convicções – a democracia e seu motor, o liberalismo. Entretanto, em O Crepúsculo da Democracia, com seus prognósticos discutíveis a respeito do enfraquecimento das defesas democráticas tanto na Europa Ocidental como nos Estados Unidos, eles parecem fechar as portas do futuro para aqueles de nós que acreditam na liberdade.

Nos últimos anos, sobretudo com o crescimento econômico da China, o sistema democrático tem experimentado derrotas na América Latina, como os casos dramáticos do Chile e da Bolívia, ao quais se juntou recentemente o Peru; onde a presidência de (Pedro) Castillo parece estar se consumando, apesar das fraudes praticadas pelo partido Peru Livre durante estas eleições, graças ao trabalho da Justiça Eleitoral, que resiste impávida a todas as manifestações contrárias. E uma mobilização de uma extrema esquerda apoiada por Cuba, Venezuela, Bolívia e Nicarágua, que, aproveitando os estragos causados pela pandemia de covid-19, parece ter conquistado mais um país para sua causa.

De qualquer maneira, acredito que nestas semanas se viu, nas manifestações gigantescas com as quais os peruanos estão defendendo suas liberdades sem se deixar intimidar pelos sectários, quão precários são os novos regimes que, inevitavelmente, como aconteceu na Venezuela, trarão fome e desemprego a seus países e uma corrupção ilimitada na gestão da máquina estatal. Esses regimes estão condenados a perecer mais cedo ou mais tarde. Nem que seja somente por sua incapacidade para dirigir os Estados elefantinos que criam (mas não sabem administrar), como ocorreu em todos – sim, em todos – os regimes onde a liberdade de mercado desapareceu em razão de um Estado voraz e monopolizador.

Essas conquistas da extrema esquerda não devem ser esquecidas, é claro. No entanto, mais cedo ou mais tarde, elas cairão. Como na União Soviética e na China, onde os sucessos relativos se devem sobretudo à mudança de uma economia controlada pelo Estado para outra, mais livre; ainda que apenas parcialmente subordinada às exigências e anomalias de governos despóticos e intolerantes. Um país pode progredir com liberdade mediada ou proibida, como a China, mas apenas até certo ponto; depois dele as liberdades de investigação e de competição são indispensáveis para avançar no domínio da tecnologia e da ciência.

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Minha confiança nos Estados Unidos tem a ver com esse domínio, que, justamente o governo catastrófico de Trump deixou intacto e funcionando, até mesmo, em certos campos, com mais liberdade do que antes. Todos os fatos apontados por Anne Applebaum em seu último livro são, sem dúvida, corretos; a multiplicação de grupos que se consideram livres das leis, a proliferação de armas, os extremismos de diferentes tipos que ameaçam o sistema e o racismo.

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Mas na minha modesta versão, nada disso pode interromper ou criar obstáculos para a razão de ser da liberdade econômica, a economia de mercado, que garante a livre concorrência; em última análise, a melhor defesa contra as ameaças à liberdade. Minha confiança neste sistema que até agora tem defendido, não sem tropeços, aquela liberdade, da qual nascem todas as outras, foi minimamente diminuída durante os anos Trump na Casa Branca. E o novo governo está dando um jeito de apagar essa memória ruim.

Há um momento em que todos, até mesmo aqueles que sabem como ninguém como enfrentar as tempestades, cansam e desistem. São os períodos em que, entre os jornalistas, prevalece aquela “retórica do desespero” a que todos estamos propensos, até ensaístas de alto calibre como Anne Applebaum. Minha impressão é que esse livro reflete esse estado de espírito.

Embora algumas de suas denúncias, em particular, as que se referem à Polônia e à Hungria, sejam assustadoras, porque, aparentemente, ambos os regimes parecem respeitar os suportes da democracia, quase tudo neles está corrompido, a começar pelo voto popular, as mentiras dos jornais, do rádio e da televisão, como acontecia naqueles regimes que se levantavam contra a liberdade. Diferentemente deles, nestes ela é elogiada, enquanto é destruída pouco a pouco. /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

© DIREITOS DE PUBLICAÇÃO EMTODAS AS LÍNGUAS RESERVADASPARA EDICIONES EL PAÍS S.L. 2021 

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Opinião por Mario Vargas Llosa

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