A Bolívia mudou desde 2003, mas e Carlos Mesa?

Candidato faz oposição a Evo Morales, mas hoje está ideologicamente mais próximo dele do que há 14 anos, quando renunciou à presidência

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Por Brendan O’Boyle
Atualização:

LA PAZ - Em 2003, a Bolívia estava em crise. Uma repressão sangrenta, após semanas de protestos, forçou o presidente Gonzalo “Goni” Sánchez de Lozada a fugir do país. Em seu lugar entrou o vice-presidente Carlos Mesa Gisbert, um recém-chegado à política que, no entanto, ganhou apoio inicial por suas promessas de liderar um governo de transição para um país dividido. Mas, menos de 20 meses depois, Mesa renunciou e sua curta presidência foi sucedida por 14 anos de governo do seu principal oponente político, Evo Morales.

Hoje, a Bolívia está novamente em apuros – convulsionada desta vez pela controvertida queda de Morales, por uma pandemia devastadora, por instituições desacreditadas e por uma crise econômica. E é neste contexto que Mesa está concorrendo à presidência, buscando uma segunda chance para tentar levar o país a dias mais brilhantes.

Outdoor com propaganda de Carlos Mesa, em Rio Seco, na Bolívia Foto: Martin Mejia / AP

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Se a eleição que ocorre hoje for tranquila, Mesa, de 67 anos, tem uma boa chance de retornar ao palácio presidencial em La Paz. A desistência da presidente interina, Jeanine Áñez, aumentou a probabilidade de Mesa fazer um segundo turno contra o ex-ministro da Economia de Morales, Luis Arce. É uma disputa que, segundo as pesquisas, Mesa venceria – ele terminou em segundo lugar na votação contestada do ano passado. No entanto, há muitas dúvidas sobre onde Mesa poderia levar a Bolívia e como ele uniria um país fragmentado geográfica, racial, econômica e politicamente.

Considerando o quanto Mesa e a Bolívia mudaram desde que ele deixou o cargo, uma nova presidência poderia ser bem diferente de 15 anos atrás. Para começar, os especialistas dizem que a política de Mesa mudou em parte graças a transformações mais amplas na sociedade boliviana.

“Ele foi movido para a esquerda”, disse Diego von Vacano, cientista político boliviano da Texas A&M University. “Isso ocorre principalmente porque Morales deslocou todo o espectro da política boliviana para a esquerda.”

No entanto, os últimos anos de Morales no cargo prejudicaram a reputação de seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS), entre os setores nos quais se apoiava, criando uma abertura para Mesa, que cortejou líderes indígenas e ambientalistas desiludidos com as políticas do MAS. A aliança eleitoral de Mesa também está à frente de outras coalizões quando se trata de apresentar candidatas femininas na eleição.

“Mesa está tentando manter uma grande coalizão onde haja representação dentro de sua aliança”, disse Devin Beaulieu, antropólogo e especialista em questões indígenas de Sucre. “Mesa é o único candidato que se declarou disposto a abrir um debate nacional sobre casamento gay, aborto e legalização da maconha.”

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O resultado é um candidato que parece diferente da política de direita com a qual ele se associou quando foi vice-presidente de Sánchez de Lozada, um empresário criado nos EUA conhecido por privatizar empresas estatais. “Mesa foi uma espécie de vice-presidente acidental de Goni (Sánchez de Lozada)”, disse Von Vacano. “Não acho que ele tenha sido o líder ideológico por trás das privatizações de Goni e de sua abordagem neoliberal.”

A presidente interina da Bolívia Jeanine Añez Foto: David Mercado/Reuters

Jorge Derpic, sociólogo boliviano e professor da Universidade da Geórgia, disse à Americas Quartely que Mesa não deve se desviar drasticamente do modelo econômico estatal que Morales perseguiu como presidente. “O MAS mudou a forma como vemos as privatizações e o papel do Estado na economia”, disse Derpic. “Não acho que Mesa tenha qualquer interesse em promover privatizações.”

Mesa disse isso em entrevistas, incluindo uma à AQ, em 2019, quando enfatizou que a Bolívia precisava de mais investimentos estrangeiros diretos, mas que isso “de forma alguma significa privatização”. “O MAS tenta vincular Mesa com Sánchez de Lozada o tempo todo, mas acho que Mesa é um animal político diferente hoje”, disse Derpic. “Em alguns aspectos, ele tem uma agenda mais progressista do que o MAS teve na última década.” 

Especialistas que falaram à AQ alertaram que a agenda de Mesa, às vezes, parece muito vaga e pode ser difícil de implementar. “Não sei dizer qual é o plano econômico dele”, afirmou Eduardo Gamarra, professor da Florida International University e especialista em política boliviana. “Há um monte de coisas que ele diz que o fazem parecer muito inteligente, e eu acho que ele é, mas realmente eu não vejo muita substância nisso.”

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O sucesso de Mesa também depende de ele ter aprendido a navegar na política depois de assumir o cargo. Jornalista e historiador renomado que estudou literatura em Madri, Mesa não tinha partido político ou experiência em cargos eletivos quando se tornou vice-presidente, em 2002. Ele é visto por alguns como distante e elitista. Quando era presidente, lutou para impor o controle sobre o Congresso e sobre as ruas. “Quando foi recrutado por Goni, ele era um estranho que estava acima da política”, disse Gamarra. “Hoje, com o conhecimento, sabemos que um dos maiores problemas para os outsiders é que eles não têm capacidade institucional para agir.”

Ainda assim, María Paz Salas, presidente da Associação Boliviana de Ciências Políticas, disse à AQ que Mesa “aprendeu lições”. Salas aponta para uma entrevista, em 2017, na qual Mesa disse que não entendeu “a essência da política” quando foi presidente. “Acreditei erroneamente que, no papel de uma transição histórica, eu deveria ser neutro”, disse. “Mais tarde, aprendi que não existe neutralidade na política.”

Mesmo assim, Mesa foi criticado, algumas vezes, por não tomar partido durante o conflito político dos últimos meses. Ele andou no limite das críticas a Áñez – atacando sua candidatura, por exemplo – ao mesmo tempo em que manteve uma clara posição anti-MAS. “Ele teve o cuidado de não irritar ambos os lados”, afirmou Derpic.

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É uma abordagem que não funcionou para Mesa durante sua presidência, quando ele tentou se aproximar da oposição, apoiando, por exemplo, uma assembleia constituinte para reescrever a Constituição e assinando um decreto que concedeu anistia a Morales e a outros envolvidos nos protestos de 2003. “Mesa achava que ele não era um presidente de transição, mas um presidente transformador”, disse Gamarra. “Mas Morales e outros o viam meramente como transitório.”

Ainda assim, a disposição de Mesa de jogar no centro pode funcionar a seu favor desta vez e pode ajudá-lo a unir o país, caso ele seja eleito. Na verdade, sua disposição em trabalhar com a oposição o ajudou. Em 2014, Morales o indicou para ser o porta-voz do governo no processo contra o Chile na Corte Internacional de Justiça, no qual a Bolívia requereu sem sucesso acesso ao Oceano Pacífico. 

Evo Morales se viu obrigado a renunciar após grupos que um dia o apoiaram se voltarem contra ele Foto: Luis Cortes / Reuters

O caso deu a Mesa uma plataforma para fortalecer seu perfil como estadista diplomático – imagem que pode ajudá-lo, caso ele se encontre liderando um país em uma transição difícil. “Mesa terá uma dificuldade extraordinária para governar um país tão polarizado. A única maneira de superar essa polarização é repovoar o centro político”, disse Gamarra. “Hoje, Mesa talvez seja o único capaz de estender a mão e construir essa ponte sobre este centro vazio.”

*É editor da Americas Quartely, onde escreve sobre política latino-americana 

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