A Buenos Aires ignorada na campanha

Do 1 milhão de favelados da capital, 100 mil vivem na Villa 31, na maioria argentinos vindos do interior e estrangeiros

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Por Roberto Lameirinhas e BUENOS AIRES
Atualização:

A poucas quadras da elegante e quase parisiense Calle Florida, uma Buenos Aires sem nenhum glamour e quase haitiana se ergue e não pára de crescer. Na Villa 31, ao lado do bairro do Retiro, onde se abrigam cerca de 100 mil do total estimado de 1 milhão de favelados da capital argentina - segundo números de movimentos populares -, a campanha para as eleições de hoje não chegou. Para os moradores das choupanas enfileiradas pelas ruas lamacentas e de esgoto a céu aberto, ela não fez nenhuma falta. "Nem lembro quando foi a última vez em que algum candidato esteve aqui", diz ao Estado Máximo Ledesma, líder da associação de bairro da Villa 31. "Só sei que não apareceu ninguém por aqui. Nem Cristina (Kirchner) nem (Elisa) Carrió nem (Roberto) Lavagna, ninguém." Ao contrário do que tem ocorrido nos últimos dias na Buenos Aires que conta política e economicamente, na Villa 31 não há cartazes de candidatos nem cabos eleitorais distribuindo panfletos. Há uma boa razão para isso: pelo menos metade da população da favela é de estrangeiros - bolivianos, paraguaios, peruanos - e argentinos vindos de outras províncias, muitos sem registro eleitoral na capital. "Ninguém se importa com a gente daqui", lamenta Ledesma. "Há anos estamos no limbo social e ninguém nos dá nenhum tipo de assistência." A associação comunitária tenta obter do governo da Capital Federal - que tem status de governo provincial - um mínimo de infra-estrutura: energia elétrica, fornecimento de água, coleta de lixo e de esgoto. "Mauricio Macri (opositor que foi eleito em junho prefeito de Buenos Aires e tomará posse em 10 de dezembro) já antecipou que vai levar urbanização a todas as favelas da cidade, menos à Villa 31", diz Ledesma. Os moradores da favela estão mobilizados para evitar a desapropriação da área. Segundo eles, existe um projeto para construir no local um complexo de edifícios comerciais e residenciais de alto padrão que ganharia o nome de Puerto Madero II. Quase à margem do Rio da Prata, o projeto complementaria o luxuoso e vizinho complexo turístico de Puerto Madero, que reurbanizou a área portuária de Buenos Aires. Outra ameaça para os moradores é a autopista sob a qual parte da favela se instalou. No meio do casario, como um sinal de alerta, uma gigantesca coluna de sustentação do que seria uma alça de acesso do complexo viário jaz sem nenhuma função. A obra foi abandonada nos anos 90, pouco antes de o então presidente Carlos Menem publicar um decreto que reconhecia o direito das famílias da Villa 31 de tornarem-se proprietárias das edificações em que vivem - embora não do terreno. INDENIZAÇÃO Na prática, a propriedade da construção significa o direito à indenização do Estado em caso de desapropriação. Mas o decreto teve o efeito de fazer com que a favela, que não pára de crescer horizontalmente, se ampliasse também na vertical. Convencidos de que a indenização será proporcional à área construída, os moradores fazem com que os casebres ganhem novos andares a cada semana. Muitos chegam a ter cinco ou seis andares. "O decreto de Menem fala em indenização pela edificação, mas não há nenhuma menção a respeito da área construída", assinala Ledesma. "A maior parte das pessoas que investem em construção aqui está iludida." Mobilização popular não é novidade na Villa 31. A favela instalou-se no local há mais de 60 anos. Seus primeiros moradores eram imigrantes, principalmente bolivianos e paraguaios. Durante a cruel ditadura militar argentina (entre 1976 e 1983), esquadrões da morte da guerra suja passaram a fazer blitze periódicas na Villa 31, em busca de militantes esquerdistas. Não há registro de que tenham encontrado células dos Montoneros ou de qualquer outro grupo de guerrilha urbana no local, mas não foram raras as vezes em que as operações deixaram um rastro de cadáveres de inocentes. Apavoradas, as famílias se mudaram da Villa 31 para outras regiões mais afastadas da Grande Buenos Aires. Das cerca de 7 mil famílias que viviam na favela na época, apenas 40 resistiram ao assédio e permaneceram em seus casebres. Aproveitando-se do êxodo dos favelados, os militares enviaram motoniveladoras à área abandonada e ali construíram o terminal rodoviário interprovincial de Buenos Aires. Os antigos moradores da favela, no entanto, retornaram ao local aos poucos e voltaram a povoar a Villa 31. VERGONHA Nem todos os habitantes do local são amistosos. "Não fotografe, não o autorizei a fotografar", grita um senhor de aproximadamente 60 anos ao repórter fotográfico do Estado Paulo Liebert. "O que vocês vêm fazer aqui? Vêm mostrar minha miséria? Não tenho orgulho dela, não quero mostrar aos outros a miséria em que vivo." Como em praticamente todas as favelas do mundo, a taxa de criminalidade na Villa 31 é alta. Em algumas partes, a permissão para o acesso de estranhos só pode ser dada por líderes de gangues de narcotraficantes. NÚMEROS 1 milhão é o número estimado de pessoas que vivem em favelas na área da Grande Buenos Aires 100 mil pessoas vivem na Villa 31, segundo a associação de bairro local; o Indec, responsável pelo censo argentino, diz que os moradores fixos do local são 25 mil 34 favelas, entre ?villas miserias?, como a 31, e assentamentos humanos (locais ocupados sem nenhum serviço de infra-estrutura) espalham-se pela Grande Buenos Aires 27% é o índice da população que vive em situação de pobreza na Argentina. Quando Kirchner assumiu, esse índice era de 57%

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