A Europa de Aylan Kurdi

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Por Roger Cohen
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Ó, Europa, o Mediterrâneo, o berço da civilização, é um túmulo líquido. Ao lado de uma rodovia austríaca, morrem 71 refugiados sem nome, asfixiados num caminhão. As autoridades checas, armadas de marcadores indeléveis, mas desprovidas do sentido histórico, gravam números de identificação na pele de 200 migrantes. Outros, são enganados pela polícia húngara com promessas de liberdade e acabam num campo de "recepção". Ó, Europa, a Eslováquia quer somente refugiados cristãos, não os muçulmanos da Síria ou do Afeganistão. Viktor Orbán, o pequeno e pomposo Putin da Hungria, declara estar protegendo a "civilização europeia" - leia-se, a Europa cristã - ao mandar instalar 175 quilômetros de arame farpado ao longo da fronteira com a Sérvia. Um menino sírio de 3 anos, com a mãozinha esquerda virada para trás, como se estivesse dormindo em seu berço, jaz morto numa praia turca. O rosto na areia. Sua censura silenciosa é impossível de apagar. Chamava-se Aylan Kurdi. Emigrava para a Europa. As sombras retornam, carregadas de ironias. A Hungria de Orán dá as costas à magnífica Hungria de 1989, o primeiro país a rasgar a Cortina de Ferro permitindo que dezenas de milhares de alemães orientais cruzassem a fronteira com a Áustria, abrindo o caminho para a Alemanha Ocidental. Hoje, a pusilânime Hungria de Orbán esquece que, em 1956, na época da invasão soviética, cerca de 200 mil húngaros fugiram para a Áustria e encontraram refúgio e liberdade na Europa Ocidental. Essa Hungria mesquinha também prefere ignorar que, de todas as bênçãos obtidas pelas antigas nações do bloco soviético, quando a divisão da Europa acabou, a liberdade de movimento foi a mais valorizada. Esse dom foi garantido pela queda de um muro. As nações da Cortina de Ferro não testemunharam o ingresso dos migrantes pós coloniais que modificaram várias sociedades da Europa Ocidental. Seus judeus foram quase todos assassinados pelos nazistas, com a ajuda de cúmplices locais. Sua formação étnica foi ainda mais homogeneizada pelos deslocamentos das fronteiras ou pelas expulsões em massa. Sua história recente tem sido de emigração em massa em busca de oportunidades de emprego no Ocidente, e não de imigração. Ó, Europa, amaldiçoada por tua demasiada história, teu nome é esquecimento. Tua verdade é miscigenação. Tuas tribos imaginárias são apenas isso, uma ilusão desmentida pela incessante migração ao longo dos séculos. Tua esperança está no sangue novo, pois a pureza racial foi o altar de tua reiterada automutilação. Teu dever é a memória, teu compromisso com os teus filhos é abertura e união. Sim, se a Europa se preocupasse com a memória, lembraria que essa é a maior onda migratória desde o fim da 2.ª Guerra, quando milhões de pessoas se deslocaram para o Ocidente fugindo do totalitarismo de Stalin. Também deveria lembrar que esse movimento em massa foi o ápice de uma guerra engendrada por uma das maiores 'civilizações" do continente: a alemã. Hoje, os refugiados clamam por ingressar na Alemanha. Neste ano, está previsto o ingresso de 800 mil. A chanceler Angela Merkel, originária da Alemanha Oriental, destaca-se acima dos outros líderes europeus porque sua história pessoal esclarece o que está em jogo. Essa é uma crise europeia. Neste momento de fratura da União Europeia, o continente tem sido lembrado de seu propósito primordial e de sua façanha singular: a ruína e a miséria da qual surgiu, as massas abandonadas que ele hospedou, a unidade que ele forjou depois que a divisão custou tantas vidas. Hoje, há necessidade de uma maior união, de uma política de imigração coerente dos 28 membros, e da renovação da desprezada ideia europeia. / Tradução de Anna Capovilla* Roger Cohen é colunista do The New York Times

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