A extrema direita alemã tem uma nova inspiração: Donald Trump

Entre os teóricos da conspiração alemães, ultranacionalistas e neonazistas, o presidente americano está surgindo como um grito de guerra, ou mesmo como um potencial 'libertador'

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Por Katrin Bennhold
Atualização:

BERLIM - Pouco antes de centenas de ativistas de extrema direita tentarem invadir o Parlamento alemão, um de seus líderes gritou para a multidão conjurando o presidente Donald Trump.

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“Trump está em Berlim!”, gritou a mulher de um pequeno palco, como para reverenciá-lo. Ela foi tão convincente que vários grupos de ativistas de extrema direita mais tarde apareceram na embaixada americana e exigiram uma audiência com Trump. “Nós sabemos que ele está lá!” eles insistiram.

Trump não estava na embaixada nem na Alemanha naquele dia - e ainda assim lá estava ele. Seu rosto estampado em faixas, camisetas e até mesmo na bandeira imperial da Alemanha pré-1918, popular entre os neonazistas na multidão de 50 mil pessoas que tinha vindo para protestar contra as restrições em decorrência da pandemia na Alemanha.

Seu nome foi invocado por muitos com um zelo quase messiânico. Foi apenas a mais recente evidência de que Trump está emergindo como uma espécie de figura de culto na cada vez mais variada cena de extrema direita alemã.

Manifestantes carregam cartazes em protesto em Berlim contra as medidas de restrições impostas pelo governo alemão em meio à pandemia da covid-19. Foto: REUTERS/Fabrizio Bensch

“Trump se tornou uma figura salvadora, uma espécie de grande redentor para a extrema direita alemã”, disse Miro Dittrich, especialista em extremismo da Fundação Amadeu-Antonio, sediada em Berlim. A Alemanha - uma nação cuja população apoia um governo que lidou com a pandemia melhor do que a maioria dos países - pode parecer um lugar improvável para Trump ganhar tal status.

Poucas nações ocidentais tiveram um relacionamento mais contencioso com Trump do que a Alemanha. A chanceler Angela Merkel, filha de um pastor e cientista, é seu oposto em termos de valores e temperamento.

As pesquisas de opinião mostram que Trump é profundamente impopular entre a grande maioria dos alemães. Mas sua mensagem de ruptura - seu nacionalismo puro e tolerância aos supremacistas brancos, juntamente com seu ceticismo quanto aos perigos da pandemia - está se espalhando bem além dos EUA, dizem especialistas em extremismo.

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Desinformação

Em um universo de desinformação em rápida expansão, essa mensagem apresenta riscos reais para as democracias ocidentais, dizem eles, confundindo os limites entre notícias reais e falsas, permitindo que grupos de extrema direita estendam seu alcance além de constituintes tradicionais e semeando o potencial para radicalização violenta.

O apelo de Trump à margem política agora acrescentou um elemento novo e imprevisível à política alemã em um momento em que a agência de inteligência doméstica identificou o extremismo de direita e o terrorismo de extrema direita como os maiores riscos para a democracia alemã.

As autoridades só recentemente acordaram para um problema de infiltração de extrema direita na polícia e nas Forças Armadas. Nos últimos 15 meses, terroristas de extrema direita mataram um político regional em sua varanda perto da cidade central de Kassel, atacaram uma sinagoga na cidade de Halle e mataram nove descendentes de imigrante na cidade de Hanau, no oeste do país. 

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Trump também apareceu no manifesto do assassino de Hanau, que elogiou sua política de “America First”. Na Alemanha, assim como nos Estados Unidos, Trump se tornou uma inspiração para esses grupos marginais. Entre eles estão não apenas movimentos de extrema direita e neonazistas há muito estabelecidos, mas também agora seguidores da QAnon, a teoria da conspiração da internet popular entre alguns dos apoiadores de Trump nos Estados Unidos que o aclama como um herói e libertador.

QAnon

O QAnon é um movimento que surgiu das profundezas da internet e foi iniciado por um anônimo que se denomina pela letra “Q” (de Questão, e “anon”, de anônimo). O grupo conspiracionista de extrema direita prega que um conluio satânico controla o governo americano e todo o país, e que o atual presidente Donald Trump trava uma batalha secreta contra essas pessoas.

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A comunidade QAnon da Alemanha, quase inexistente quando a pandemia atingiu o país pela primeira vez em março, pode agora ser a maior fora dos Estados Unidos junto com a do Reino Unido, dizem analistas que rastreiam seus canais online mais populares.

Matthias Quent, um especialista em extrema direita alemã e diretor de um instituto que estuda a democracia e a sociedade civil, chama isso de "Trumpificação da extrema direita alemã".

Apoiador da QAnon em ato de apoio a Trump nos EUA Foto: AP Photo/Matt Rourke

“Trump conseguiu atrair pessoas em ambientes diferentes, e é isso que estamos vendo aqui também”, disse Quent. “Temos de tudo, de grupos anti-vacina a neonazistas marchando contra as medidas para combate ao coronavírus. O denominador comum é que são as pessoas que estão deixando o mainstream, que estão se enfurecendo contra o sistema. Trump, acrescentou ele, "é o cara que luta contra o sistema liberal-democrático".

Para algumas pessoas da extrema direita, a mensagem de Trump foi especialmente bem-vinda em um momento em que o partido nacionalista alemão, o Alternativa para a Alemanha (AfD), está lutando para explorar a pandemia e viu seu apoio cair para cerca de 10%, dizem especialistas.

Os populistas nacionalistas na Alemanha há muito acolhem com agrado a presença de um dos seus, segundo eles, na Casa Branca. A linguagem e a ideologia de Trump ajudaram a legitimar a deles. A AfD parafraseou repetidamente Trump, pedindo uma abordagem “Alemanha primeiro”. Mas o presidente também é popular em círculos mais extremistas.

Caroline Sommerfeld, uma ideóloga proeminente de um contingente conhecido como a “nova direita” com ligações estreitas com o movimento extremista chamado “Identidade Geração”, disse que abriu uma garrafa de champanhe quando Trump ganhou as eleições de 2016.

O fenômeno QAnon adicionou um novo tipo de combustível a esse fogo. Os seguidores da QAnon argumentam que Trump está lutando contra um “estado profundo” que não apenas controla as finanças e o poder, mas também abusa e mata crianças em prisões subterrâneas para extrair uma substância que mantém seus membros jovens.

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Seguidores alemães afirmam que o “estado profundo” é global e que Merkel faz parte dele. Trump, dizem eles, vai libertar a Alemanha da "ditadura" de Merkel.

A revista de extrema direita Compact, que imprimiu os discursos de Trump para seus leitores, teve um Q gigante em sua última capa e realizou uma "semana Q" em seu canal de vídeo, entrevistando radicais de extrema direita como Björn Höcke. Nas ruas de Berlim, no fim de semana passado, havia bandeiras Q e camisetas e vários banners com a inscrição "WWG1WGA", um acrônimo codificado para o lema de Q: "Onde vamos um, vamos todos".

Os números reais são difíceis de discernir, com os seguidores muitas vezes assinando contas em plataformas diferentes, dizem os analistas. O NewsGuard, um veículo que monitora a desinformação dsediado nos EUA, descobriu que em toda a Europa, as contas no YouTube, Facebook e Telegram promovendo a conspiração QAnon contavam com 448 mil seguidores.

Só na Alemanha, o número de seguidores de contas relacionadas ao QAnon aumentou para mais de 200  mil, disse Dittrich. O maior canal QAnon em alemão no YouTube, Qlobal-Change, tem mais de 17 milhões de visualizações e quadruplicou o número de seguidores no Telegram para mais de 124 mil desde o bloqueio do coronavírus em março, disse ele.

“Há uma enorme comunidade Q na Alemanha”, disse Dittrich, com novas postagens e memes que dominam os fóruns nos Estados Unidos imediatamente traduzidos e interpretados para o alemão.

Teorias da conspiração 

A fusão da extrema direita tradicional com a turma do QAnon foi algo novo, disse Quent. “É um tipo novo e difuso de rebelião populista que se alimenta de teorias da conspiração e está sendo abastecido com ideologia de diferentes cantos do ecossistema de extrema direita”, disse ele.

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Uma razão pela qual a conspiração QAnon decolou na Alemanha, disse Dittrich, é que ela se encaixa bem com as teorias e fantasias da conspiração locais populares na extrema direita. Um deles é a "grande substituição", que afirma que Merkel e outros governos têm trazido imigrantes deliberadamente para subverter a identidade étnica e cultural da Alemanha.

Outra é uma suposta crise nacional chamada "Dia X", quando a ordem atual da Alemanha supostamente entrará em colapso e os neonazistas assumirão. Uma terceira teoria é a crença de que a Alemanha não é um país soberano, mas uma empresa constituída e um território ocupado controlado por globalistas.

Essa crença é mantida entre uma facção conhecida como "Reichsbürger", ou cidadãos do Reich, que orquestrou a breve tentativa de tomada do Parlamento em 29 de agosto. Eles não reconhecem a República Federal da Alemanha pós-Segunda Guerra e estão contando com Trump e o presidente Vladimir Putin, da Rússia, para assinar um “tratado de paz” para libertar os alemães de seu próprio governo.

Outra razão para a propagação do QAnon é que várias celebridades alemãs se tornaram multiplicadoras da conspiração, entre elas um ex-apresentador de notícias e um rapper e ex-juiz do equivalente alemão do "American Idol".

Uma das maiores figuras que espalhou a conspiração QAnon é Attila Hildmann, um chef-celebridade vegano que virou influenciador de extrema direita com mais de 80 mil seguidores no aplicativo de mensagens Telegram. Ele apareceu em todas as principais marchas contra o coronavírus em Berlim, desafiando as máscaras faciais, Bill Gates e a família Rothschild - e apelando a Trump para libertar a Alemanha.

“Trump é alguém que luta contra o‘ estado profundo’ global há anos”, disse Hildmann em uma entrevista na semana passada. “Trump se tornou uma figura de luz nesse movimento, especialmente para QAnon, justamente porque luta contra essas forças globais.”

“É por isso que a esperança para o movimento nacional alemão, ou movimento de libertação, reside basicamente em Q e Trump. Ele é uma figura de luz porque mostra que você pode lutar contra essas potências globais e que ele é vitorioso. Os alemães esperam que Trump liberte a Alemanha do regime de Merkel (...) para que o Reich alemão seja reativado”.

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A influência de Hildmann ficou clara em junho, quando ele mobilizou milhares de pessoas para enviar mensagens às embaixadas dos EUA e da Rússia em Berlim para pedir ajuda. No espaço de poucos dias, 24 mil mensagens foram recebidas pelas embaixadas convocando Trump e Putin a "libertar" a Alemanha do "regime criminoso" de Merkel e prevenir a "vacinação forçada" e o "genocídio".

A agência de inteligência doméstica da Alemanha alertou sobre o risco de extremistas de direita usarem a pandemia para seus próprios fins. Na semana passada, o chefe da agência, Thomas Haldenwang, disse que "elementos de extrema direita agressivos e perturbadores" foram a força motriz por trás dos protestos contra as restrições ao coronavírus.

Mas especialistas em extremismo e legisladores temem que os serviços de segurança não estejam prestando atenção o suficiente ao potencial violento na mistura de campanhas de desinformação da QAnon e ideologia de extrema direita cultivada em casa.

Nos Estados Unidos, alguns seguidores do QAnon foram acusados de crimes violentos, incluindo um acusado de assassinar um chefe da máfia em Nova York no ano passado e outro preso em abril após supostamente ameaçar matar Joe Biden, atual candidato democrata.

O FBI alertou que o QAnon representa uma ameaça potencial de terrorismo doméstico. Na Alemanha, uma linguagem que lembra QAnon foi usada no manifesto do atirador que matou nove descendentes de imigrantes na cidade de Hanau, no oeste do país, em fevereiro. “Já vimos que essa conspiração tem o potencial de radicalizar as pessoas”, disse Dittrich.

Existem cerca de 19 mil Reichsbürger na Alemanha, cerca de mil deles classificados como extremistas de direita pelo serviço de inteligência doméstico. Muitos deles estão armados.

“Em um momento em que algumas pessoas estão determinadas a destruir o discurso democrático com todos os meios possíveis”, disse Konstantin von Notz, legislador e vice-presidente do comitê de supervisão de inteligência, “temos que levar esse fenômeno muito a sério”.

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