'A forma como os europeus nos encaram mudou', dizem muçulmanas no continente

Diante da polêmica sobre a proibição do uso do burkini, mulheres escreveram o que sentem ao jornal 'The New York Times'

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Por Lillie Dremeaux
Atualização:

A polêmica causada pela proibição do burkini em mais de trinta cidades litorâneas francesas não conseguiu calar as vozes de muçulmanas, para quem a roupa de banho foi criada. O jornal The New York Times pediu a opinião delas e as respostas - mais de mil comentários da França, Bélgica e outros países - foram muito além da questão da vestimenta.

O resultado foi um retrato da vida da mulher muçulmana nas partes da Europa onde o terrorismo colocou todo mundo em alerta. Uma expressão francesa foi usada diversas vezes: "un combat", ou "uma luta", para descrever o dia a dia. Muitas dessas mulheres, nascidas e criadas na França, se descreveram confusas quando pessoas as mandaram "voltar para a terra de onde vieram".

Muitas mulheres muçulmanas, nascidas e criadas na França, se descreveram confusas quando pessoas as mandaram "voltar para a terra de onde vieram" Foto: KHALIL HAMRA/AP

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A justiça suspendeu algumas proibições ao burkini - inclusive em Nice, local do atentado no Dia da Bastilha -, mas o debate está longe de acabar.

Muitas mulheres escreveram dizendo que o sentimento antimuçulmano se intensificou após os ataques à sede da revista satírica Charlie Hebdo, em Paris, ocorrido em janeiro de 2015 e, mais recentemente, em Bruxelas, Paris e Nice. Porém, para Halima Djalab Bouguerra, estudante de 21 anos de Bourg-en-Bresse, França, o fenômeno começou bem antes, com os assassinatos cometidos por Mohamed Merah, no sul do país, em 2012.

"A forma como os europeus nos encaram mudou. Não têm mais papas na língua. Ninguém mais tem medo de mandar um muçulmano 'voltar para a sua terra'", escreve ela.

Veja outros depoimentos:

- Hajer Zennou, 27 anos, estilista, Lyon, na França, referindo-se a uma mulher que foi cercada por policiais em uma praia de Nice:

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"Isso me lembra dos primeiros dias no colégio, logo depois que a lei que proibia o hijab nas escolas foi aprovada. Minha professora me forçou a tirar o véu na frente dos outros alunos. Eu fui humilhada. Hoje, senti o coração pequeno de novo. Vi uma mulher tendo que tirar a roupa e perguntei a mim mesma quando é que isso vai acabar."

- Charlotte Monnier, 23 anos, estudante de Arquitetura, Toulouse, França:

"Sou insultada; cospem em mim, iteralmente, todo dia, no metrô, no ônibus, na escola. Engraçado que eu nunca ofendi, nem bati em ninguém. Não, sou só muçulmana. Estou pensando seriamente em me mudar para outro lugar, onde as pessoas não me olhem de um jeito que me dê vontade de chorar quando chego em casa. Tenho medo de ser forçada a usar a meia-lua amarela na roupa um dia, como os judeus tiveram que fazer com a Estrela de Davi, há algumas décadas."

- Samia Fekih, 36 anos, gerente de projetos digitais, Paris:

"Fiquei curiosa para saber se nas cidades onde proibiram as mulheres de usar burkini, os cachorros podiam nadar; e descobri que, em algumas delas, podiam, sim. Pessoalmente, fiquei escandalizada ao saber que um animal tem mais direitos do que uma mulher de véu."

- Souad el Bouchihati, 26 anos, assistente social, Gouda, Holanda:

"Toda vez que visito o Marrocos, eu me sinto mais livre e vejo mais respeito que aqui no Ocidente."

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- Hadjira Skoundri, 22 anos, funcionária publica municipal, Toulouse, França:

"Não me importo de tirar o véu para trabalhar. O que me incomoda é ter que escondê-lo dos colegas. É claro que não durou muito tempo. Encontrei uma menina do escritório quando fazia compras com uma amiga e estava com a cabeça coberta. Quando a cumprimentei, falei baixinho que mais tarde explicava tudo. Eu me senti tão mal de ter mentido durante tanto tempo. Foi um inferno! Aí mandei um torpedo contando tudo. Ela disse que entendia a minha situação e prometeu não espalhar para ninguém."

- Mira Hassine, 27 anos, funcionária de uma construtora e muçulmana praticante que não usa véu, Orléans, França:

"Mesmo que eu me esforce ao máximo para me 'integrar', sou constantemente lembrada que, para que isso aconteça completa e integralmente, tenho que abrir mão de certos princípios e da minha religião. Em casa, no trabalho e até entre amigos há uma certa pressão. Não tenho coragem de aceitar convites porque não aguento mais recusar bebidas alcoólicas e ter que me justificar educadamente, pisando em ovos e fazendo de tudo para não dizer algo que possa ser mal-interpretado. No trabalho, teve piadinha do tipo 'Você ajudou seus primos?' depois dos ataques terroristas. E aqueles de nós que criticam os terroristas se ofendem com essas novas leis. Aí o que acontece? Você se isola. E uma vez que age assim, dificilmente vai conseguir se integrar."

- Karima Mondon, 37 anos, professora de Francês, Casablanca, no Marrocos, que se mudou recentemente para Lyon, França:

"Ser muçulmana na França é viver num sistema de apartheid no qual a proibição do burkini é só mais um passo. Acho que as francesas islâmicas poderiam pedir asilo nos EUA, por exemplo, tamanha é a perseguição que sofremos."

- Linda Alem, 27 anos, enfermeira de um centro de diálise, Paris:

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"Sou enfermeira e uso véu - menos no trabalho, porque aí é impossível. Tenho que tirar quando chego ao hospital. Nada na cabeça, sem manga comprida, nada que possa me cobrir de acordo com os princípios que regem a minha vida. A nós foi negada a possibilidade de frequentar a piscina e agora, de ir à praia. O que vem a seguir? Vamos ter que usar a meia-lua para sermos reconhecidas?".

- Nora Mahboub, 21 anos, estudante de Engenharia, Paris:

"Eu me sinto mal a ponto de achar que estou ficando paranoica! Quando estudava, tinha um colega de classe que me chamava de salafista e me ameaçou de morte. Por quê? Porque me viu na rua usando o véu. Quando fui falar com a assistente da diretoria, a única solução que ela encontrou foi expulsar nós dois se não dissipássemos a tensão que ele causou. Um verdadeiro pesadelo, onde todos os caminhos levam à injustiça. Escrevo essas palavras com os olhos cheios de lágrimas e, embora não queira fazer papel de vítima, as pessoas podem ser tão implacáveis que vou acabar deixando este país, mais cedo ou mais tarde. Com certeza vão ter o que querem, mas eu não tenho a força de uma Rosa Parks. Uma engenheira a menos na França, esse vai ser o castigo deles."

- Saadia Akessour, 31 anos, dona de casa que foi forçada a tirar o véu durante o estágio que fazia como parteira e acabou abandonado os estudos, Liège, Bélgica:

"Quando estava na escola, era aluna bem aplicada. Adorava aprender, mas, com o tempo, fui perdendo a motivação. Sabia que, como muçulmana que usava véu, não teria futuro no mundo profissional. Pedem que a gente se integre, mas, infelizmente, ninguém pensa em nos integrar."

Veja abaixo: A polêmica do burkini​

- Fadoua Hachimi, 41 anos, assistente de compras, Les Lilas, França:

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"Este verão fui nadar perto de Hendaye, no sudoeste da França. Sabia que tinha virado meio que a atração local, mas acabei vendo que o pessoal foi gentil. A impressão é a de que a imprensa e os políticos não estão em sintonia com o que as pessoas pensam."

- Nadia Lamarti, 35 anos, mãe de quatro meninas que estudou Assistência Social, Zellik, Bélgica:

"Eu me sinto uma transgressora, algum tipo de criminosa que está exigindo algo ilegal, embora não queira nada além do direito de ser livre."

- Assia Boukhelifa, 22 anos, estudante de Ciências Políticas, Lille, França:

"Eu acho insano que os franceses pareçam estar descobrindo o Islã agora e vêm falando de integração quando, na verdade, já somos a terceira ou quarta geração de descendentes de muçulmanos do norte da África vivendo no país."

- Ennaji Loubna, 30 anos, aluna de mestrado em Sociologia, Perpignan, França:

"Eu uso a roupa de banho que me cobre inteira. Burkini é um termo muito carregado de conotação. Eu costumava só olhar os outros se divertindo, aproveitando a água; no máximo, entrava no mar com roupas comuns, o que é absolutamente impraticável. Essa peça me libertou."

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- Khadija Manouach, 29 anos, professora primária, Bruxelas:

"Obrigada por nos encararem como seres humanos e levarem nossas opiniões em consideração. Na Bélgica, assim como na França, nunca temos a chance de falar, embora nós, muçulmanos, (de véu ou não) sejamos os mais afetados pelas controvérsias recorrentes em relação ao Islã e às mulheres. Somos vistas como preconceituosas, descerebradas e submissas a nossos maridos e pais. Eu sou muçulmana, professora, tolerante, feminista e uso o véu."

- Sarah Nahal, aluna de Economia e Administração, Grenoble, França:

"Como jovem muçulmana, não me sinto mais segura. Estou me preparando para me mudar para o Reino Unido, onde posso trabalhar e viver normalmente - o que me entristece porque amo o meu país."

- Nadia Benabdelkader, 25 anos, estudante, Roubaix, França:

"Meu pai vive na França desde os oito anos de idade, trabalha desde os 14 e, no entanto, isso não basta para nos encararem como cidadãos comuns, já que o véu incomoda tanto. O que podemos fazer? Ter coragem para lutar com as armas que temos à nossa disposição: conhecimento, educação e força de vontade!"

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