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É prêmio Nobel de Literatura. Escreve quinzenalmente.

Opinião|A fúria na era Trump

Lendo-se 'Fogo e Fúria', fica parecendo que a vida política dos EUA atrai apenas mediocridades irrecuperáveis, pessoas cegas ao idealismo e a toda intenção altruísta, sem ideias, princípios e valores, ávidas por dinheiro e poder

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Atualização:

Como se fabrica um best seller? Assim: a editora Henry Holt comunica que publicará o livro Fire and Fury, do jornalista Michael Wolff, revelando segredos sobre Donald Trump na Casa Branca, e dá exemplos escandalosos. O presidente reage e seus advogados anunciam que vão aos tribunais para evitar a publicação, que é adiantada pela editora. 

Polêmico livro sobre Donald Trump à venda em livraria de Chicago Foto: AP Photo/Charles Rex Arbogast

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Eu estava em Miami e tratei de comprá-lo no mesmo dia. O livro se esgotou em três horas em todas as livrarias da cidade. A editora anuncia que a milionária segunda edição de Fogo e Fúria sairia em poucos dias. Assim, Trump e seus advogados conseguiram que um livro sem nenhum mérito – é apenas mais um sobre o novo ocupante da Casa Branca – seja vendido como pão quente no mundo todo.

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Há muito tempo não lia algo tão deprimente como a coleção de fuxicos, revelações, intrigas, rancores, vilanias e estupidez reunida por Wolff, com o testemunho de umas 300 pessoas vinculadas ao novo regime. A se acreditar no autor, o atual governo é composto de politiqueiros ignorantes e intrigantes que se unem, se estranham e se apunhalam numa luta frenética para ganhar posições e defender as que já conseguiram graças ao deus supremo Donald Trump. 

Este, claro, é o pior de todos, um personagem que, pelo que se sabe, nunca leu um livro na vida – nem sequer aquele que escreveram para que publicasse em seu nome relatando seus êxitos empresariais. Sua cultura vem exclusivamente da televisão. Sua energia é inesgotável e sua dieta diária, composta de vários X-búrgueres e 12 Coca-Colas light. Seu asseio e seu sentido de ordem deixam muito a desejar. Por exemplo, teve um chilique quando uma arrumadeira pegou uma de suas camisas do chão acreditando que estivesse suja. Premissas importantes como essa ocupam muitas das 322 páginas do livro.

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Segundo Wolff, ninguém, a começar o próprio Trump, esperava que ele ganhasse a eleição. A equipe de campanha não havia se preparado para uma vitória. Daí o caos vertiginoso no qual entrou a Casa Branca. 

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Não só não havia um programa de governo: tampouco havia pessoas capazes de materializá-lo. As nomeações foram feitas às pressas, e os únicos critérios para a escolha eram o beneplácito e o faro de Trump. As lutas internas paralisavam toda ação. 

Isso tinha efeitos catastróficos na política internacional, na qual os rompantes cotidianos do presidente ofendiam aliados, violentavam tratados e levavam-no a tratar com luvas de pelica tradicionais adversários do país, como a Rússia de Putin, frente à qual Trump parece ter uma debilidade quase tão grande quanto os preconceitos contra mexicanos, haitianos, salvadorenhos e, no geral, todos os imigrantes procedentes “desses países de merda”. 

Lendo-se Fogo e Fúria, fica parecendo que a vida política dos EUA atrai apenas mediocridades irrecuperáveis, pessoas cegas ao idealismo e a toda intenção altruísta, sem ideias, princípios e valores, ávidas por dinheiro e poder. Os bilionários têm papel fundamental nessa trama e, das sombras, controlam os fios que põem em ação parlamentares, ministros, juízes e burocratas. Um personagem central do livro é Steve Bannon, o último chefe de campanha de Trump e, acredita-se, o arquiteto de sua vitória. Bannon é algo assim como “o teórico” do movimento. Católico praticante, oficial da Marinha por sete anos, colaborador e jornalista de publicações de extrema direita como Breitbart News, ele se autodefine como “nacionalista populista”. 

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Bannon pensava mal, mas, pelo menos pensava. De sua cabeça saíram alguns cavalos de batalha de Trump: o muro para isolar os mexicanos, o fim da ampliação da saúde pública aprovada por Obama (o Obamacare), a obrigação das fábricas que saíram dos EUA de regressar ao solo americano, a redução drástica da imigração e de impostos para as empresas e o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel. Para desgraça de Bannon, a revista Time afirmou que ele era o presidente nas sombras. Trump teve um acesso de raiva e começou a marginalizá-lo. 

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Expulso o “ideólogo” do paraíso, as ideias desapareceram da administração e do entorno de Trump. A política ficou reduzida exclusivamente ao pragmatismo – em outras palavras, a acompanhar as decisões caprichosas e os movimentos táteis e retráteis do presidente. Pobre país!

Embora eu acredite que a descrição de Wolff seja exagerada e caricatural, e ler seu livro uma perda de tempo, por desgraça existe algo de tudo aquilo na presidência de Trump. É provável que nunca em sua história os EUA tenham se empobrecido tanto, política e intelectualmente, como nesta administração. Isso é grave para o país, mas ainda mais grave para o Ocidente democrático e liberal, cujo líder vai deixando de sê-lo a cada dia, com as consequências previsíveis: China e Rússia ocupam as posições que os EUA abandonam, adquirindo uma influência política e econômica crescente, talvez impossível de se deter, em todo o Terceiro Mundo e em alguns países do Leste Europeu. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ 

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © 2016 EDICIONES EL PAÍS, SL. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA

Opinião por Mario Vargas Llosa

É prêmio Nobel de Literatura

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