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A Grã-Bretanha sob o terror da vigilância

Por Simon Jenkins
Atualização:

A máquina está descontrolada. A vigilância dos indivíduos na Grã-Bretanha está tão difundida que nenhuma fiscalização democrática é remotamente plausível. Em 2006, cerca de 800 organizações - incluindo a polícia, o Fisco e os governos central e local - ordenaram, e quase sempre conseguiram, 253 mil intromissões na privacidade de cidadãos, um recorde que foi muito além do registrado em qualquer outro país do mundo livre. O caso do deputado trabalhista Sadiq Khan lançou completamente por terra a tese, muito querida pelo ex-primeiro-ministro Tony Blair e pelo atual, Gordon Brown, de que qualquer aumento de poder do Estado é sustentável porque os ministros têm o controle. No entanto, no caso dos grampos telefônicos, dispositivos de escuta, cartões de identidade, vigilância por vídeo ou prisão sem julgamento, isso é simplesmente uma mentira. Ninguém consegue controlar esta torrente de intrusões. Ninguém consegue controlar uma barragem que se rompe. Khan, líder da bancada do governo, foi supostamente alvo da polícia pelo fato de ser um "advogado de direitos humanos" e teve suas reuniões com um cliente na prisão gravadas. De qualquer maneira, a escuta aniquilou a "Doutrina Wilson", segundo a qual parlamentares não podem ser objeto de escuta. O machismo da segurança alega que, na "era do terrorismo", os homens de verdade devem grampear tudo e todos. O ex-chefe da Scotland Yard John O?Connor insinuou esta semana que a polícia seria negligente se não grampeasse o telefone de alguém que eles - repito, eles - considerassem uma ameaça. A tese de Blair, de que "o 11 de Setembro mudou tudo", hoje é o sinal verde para qualquer consultor de segurança, vendedor de aparelhos de vigilância ou algum ministro trabalhista que queira exibir a sua força nos tablóides. Há anos um advogado forneceu-me a prova incontestável de que uma conversa telefônica com seu cliente fora grampeada pela polícia e enviada para a Promotoria. Esse grampo supostamente exigia um mandado pessoal da parte do ministro do Interior. Quando confrontado com a questão, o ministro negou categoricamente e disse que nunca teria autorizado uma escuta. Voltei a examinar o caso com o chefe da polícia que me respondeu em meio a gargalhadas: "O ministro do Interior está absolutamente certo. Ele deve autorizar todos os ?grampos? enviados a ele para aprovação. Mas não, é claro, o restante." A triste realidade no caso da semana passada é que vimos uma grande parte do establishment britânico permitindo-se acreditar que as conversas particulares entre um advogado e seu cliente, e entre um parlamentar e seu constituinte, não podem ser mais consideradas ocorrências imunes à vigilância do Estado. Dessa maneira, um princípio fundamental de uma democracia livre foi, friamente, abandonado. Não é uma vitória da segurança nacional. É a vitória do terrorismo. A organização de monitoramento Privacy Internacional deu à Grã-Bretanha a pior nota na Europa em se tratando desse tipo de vigilância. Na verdade, foi a pior nota entre os países do chamado "mundo democrático", colocando-a ao lado de "sociedades de vigilância endêmica", como Rússia e Cingapura. Mark Kearney, policial do Vale do Tâmisa que grampeou a conversa de Khan na prisão de Woodhill, disse ter protestado, alegando ser "antiético", mas foi desautorizado e ficou sob "forte pressão" por parte da polícia. Depois disso, teve de deixar o emprego. Essa história parece o roteiro do filme de espionagem alemão A Vida dos Outros. Esse péssimo histórico da Grã-Bretanha é resultado da fraqueza do governo em relação a seu aparelho de segurança. Mesmo entre supostos liberais, a resposta é exigir não menos vigilância, mas mais fiscalização. David Davis, porta-voz dos conservadores no Parlamento, disse semana passada que "deve haver controle". A defensora de direitos humanos, Liberty, deseja "leis sobre vigilância mais vigorosas e mais simples, com mandados emitidos por juízes, não policiais ou políticos". As pessoas vêm dizendo isso há anos. A Grã-Bretanha tem uma burocracia de fiscalização kafkiana, que está no mesmo nível daquela que pretende supervisionar. Cerca de seis monitores de fiscalização separados estão dirigidos a eles próprios. Tudo é operado secretamente. A distinção feita pelo ministro da Justiça, Jack Straw, entre um grampo "intrusivo" e um "dirigido" ilustra o estado de confusão que prevalece. Quando o conselho pode grampeá-lo por ter depositado lixo em local proibido, quando as prisões podem gravar as conversas dos advogados de defesa, quando qualquer ato potencialmente criminoso pode justificar uma violação eletrônica da privacidade, e quando ministros recorrem à desculpa usada pelo ditador, de que "o inocente não precisa temer", os sinos de alerta devem começar a soar. Não existe nenhum "equilíbrio" a ser alcançado entre liberdade civil e segurança nacional. A liberdade civil é absoluta e a segurança é sua serva. Medidas são necessárias para proteger a população, mas é preciso traçar uma linha rigorosa em torno delas, em que algum risco precisa ser aceito, ou então um Estado controlado está cada vez mais próximo. Quinhentos milhões de ocorrências desse tipo na Grã-Bretanha estão além de todo o poder de controle de políticos ou dos encarregados da fiscalização. É paranóia estatal, justificada apenas pela "guerra contra o terror". Na verdade, não está havendo uma luta contra o terror, mas ela está sendo promovida. Essa vigilância em massa é um dos venenos que os terroristas procuram injetar nas veias da sociedade civil. Mais fiscalização não vai solucionar o problema da vigilância, mas ocultar sua proliferação. Afirmar que a Grã-Bretanha é um estado policial pode ser um insulto para aqueles que são vítimas da polícia verdadeira. Mas não tenho dúvidas que ministros fracos estão se encaminhando nesse sentido, empurrados pelo complexo industrial e de segurança. Não é a fiscalização que precisa ser aumentada, mas as categorias e as fronteiras da vigilância que precisam ser drasticamente controladas. Naturalmente, existem pessoas que desejam explodir bombas na Grã-Bretanha. Os contribuintes gastam uma fortuna tentando detê-las. Mas o quão freqüentemente devemos nos lembrar de que essas pessoas não precisam matar para atingirem o seu fim quando aplacamos seu anseio pelo martírio da repressão? O volume de casos de vigilância na Grã-Bretanha é grotesco. É um sinal da corrupção do poder e nada mais. *Simon Jenkins é colunista do ?The Guardian?

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