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É prêmio Nobel de Literatura. Escreve quinzenalmente.

Opinião|A hispanidade

O 12 de outubro celebra o fato de a Espanha ter abandonado a censura, a repressão e as guerras

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Foto do author Mario Vargas Llosa
Atualização:

Em artigo muito bem escrito, como de hábito, Antonio Elorza falou do dissabor que lhe causa a palavra “hispanidade”, que associa ao racismo nazista e ao franquismo. Seu texto me fez lembrar os indigenistas que associavam o termo especialmente a “todos os horrores da conquista espanhola”, ou seja, a exploração dos índios pelos chamados encomenderos (indivíduos que podiam usar a mão de obra indígena para explorar minérios e terras, desde que os índios fossem catequizados) e a destruição dos impérios inca, asteca e o saque de suas riquezas.

Gostaria de contestar esses argumentos negativos e reivindicar essa bela palavra que, para mim, se associa melhor às boas coisas que ocorreram na América Latina, um continente que, graças à chegada dos espanhóis, passou integrar a cultura ocidental, ser herdeira da Grécia, de Roma, do Renascimento, do Século de Ouro e, resumindo, das suas melhores tradições: os direitos humanos e a cultura da liberdade.

Espanhóis protestam contra o traslado dos restos do ditador Francisco Franco para a Catedral de Almudena, em Madri Foto: OSCAR DEL POZO / AFP

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A conquista foi horrível, claro, e deve ser criticada, mas também ser situada em seu momento histórico e comparada com outras, que não foram menos ferozes, mas que, diferentemente da que integrou a América ao Ocidente, não deixaram nenhuma marca positiva nos países conquistados.

É preciso também lembrar que a Espanha foi o único império na época a permitir as mais ferozes críticas daquela conquista – lembremos os ataques do padre Bartolomé de Las Casas – e a se interrogar sobre o assunto, estimulando um debate teológico sobre o direito de impor sua autoridade e sua religião aos habitantes daqueles territórios.

A situação dos indígenas na América Latina era vergonhosa, sem dúvida, mas hoje as críticas devem recair sobre os governos independentes que, em 200 anos de soberania, não foram capazes de fazer justiça aos descendentes de incas, astecas e maias, mas, ao contrário, colaboraram para eles se tornarem mais pobres, a explorá-los e mantê-los numa servidão abjeta.

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Não nos esqueçamos que os piores massacres de indígenas foram cometidos em países como Chile e Argentina, após a independência, às vezes por governantes ilustres, como Sarmiento, convencidos de que os índios eram um obstáculo à modernização e à prosperidade da América Latina. Para qualquer latino-americano, a crítica à conquista das Índias, por uma obrigação moral, tem de ser também uma autocrítica.

As civilizações pré-hispânicas atingiram altos níveis de organização e construíram monumentos majestosos. Do ponto de vista social, afirma-se que os incas eliminaram a fome em seu vasto império. Uma façanha formidável. Mas não vamos nos enganar: apesar de tudo isso ainda eram sociedades bárbaras, que praticavam sacrifícios humanos e os fortes e poderosos escravizavam os mais fracos.

Graças à hispanidade, nós, centenas de milhões de latino-americanos, nos entendemos, porque nosso idioma é o espanhol, uma língua que nos aproxima e nos entrelaça dentro de uma das muitas comunidades que formam a civilização ocidental.

Como teria sido terrível se continuássemos divididos e incomunicáveis pelos milhares de dialetos como era antes das caravelas de Colombo divisarem a Ilha de Guanahaní (onde Cristóvão Colombo desembarcou em 1492). Falar uma língua – e tê-la herdado – não é apenas desfrutar de um instrumento prático de comunicação; é sobretudo fazer parte de uma tradição e de valores representados por figuras como Cervantes, Quevedo, Góngora, Santa Teresa, San Juan de la Cruz, e contribuições nossas tão singulares a esse legado, como Sóror Juana Inés de la Cruz e o inca Garcilaso de la Vega. 

Não sou crente, mas muitos milhões de hispano-americanos são, e a religião, ou seu rechaço, são duas maneiras de manter na América algumas formas de ser e crer que provêm do Ocidente e reforçam nossa percepção de pertencer a uma civilização que, no final das contas, contribuiu para humanizar a vida dos seres humanos e seu progresso material e social.

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Também fazem parte da tradição ocidental as tiranias e o fanatismo, e sinistras ditaduras como as de Hitler e de Franco, mas seria mesquinho e absurdo considerar que é esse desvio do Ocidente – como o antissemitismo – que representa a hispanidade, um conceito que na sua essência se refere à rica língua na qual se expressam mais de 500 milhões de pessoas no mundo.

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A hispanidade é um conceito muito amplo, claro e, embora os conquistadores tenham se refugiado nele, como também os inquisidores e os ditadorzinhos de toda índole que mancharam nossa história, nele estão presentes os melhores pensadores, poetas e pessoas que lutaram por causas boas – sendo a liberdade a mais importante delas – que tivemos na Espanha e na América Latina, e os heróis civis e anônimos que dedicaram sua vida a ideais que ainda são atuais e admiráveis.

Seria uma aberração acreditar que a Espanha é somente Franco; também o são os milhões de democratas que sofreram perseguições, prisão e fuzilamento ou partiram para um exílio de muitos anos.

Nos dias de hoje, hispanidade é a transição pacífica que assombrou o mundo pela sensatez demonstrada pelos dirigentes políticos de todos os partidos e tendências e a Constituição mais admirável da história da Espanha, que respaldou as instituições democráticas e o extraordinário progresso do país nesses 40 anos de liberdade. 

Sou testemunha disso. Cheguei a Madri ainda estudante, em agosto de 1958, e a Espanha era um país subdesenvolvido, com uma ditadura severíssima e uma censura tão rigorosa que mantinha a sociedade imobilizada num ambiente de sacristia e quartel, onde era necessário sintonizar todas as noites a rádio francesa para saber o que vinha ocorrendo na Espanha e no restante do mundo.

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Viajar naqueles anos por algumas regiões era encontrar vilarejos sem homens – que haviam partido para trabalhar em outros países da Europa –, péssimas estradas e uma pobreza que se assemelhava ao que se vê na América Latina. A transformação do país em poucas décadas foi pouco menos do que assombrosa, um verdadeiro exemplo para o mundo do que é possível fazer quando se trabalha e se vive em liberdade e são aproveitadas as oportunidades oferecidas pelo fato de fazer parte de uma Europa em construção.

Nos meus dois primeiros anos em Madri, sonhava em terminar meu curso na Universidade Complutense e partir para Paris. Ingenuamente, associava a França a um paraíso das letras, das artes e dos debates políticos que uma grande cultura e a liberdade permitiam e estimulavam. Buscando a mesma coisa hoje, chegam a Madri muitos jovens de toda América Latina, artistas, escritores, músicos, bailarinos, que vêm para cá em busca daquilo que há algumas décadas nós buscávamos em Paris. 

O 12 de outubro celebra não os anos obscuros e a pesada tradição de censura, repressão, guerras civis e obscurantismo, mas o fato de a Espanha de hoje ter deixado para trás tudo isso, e esperamos que para sempre. Não há nenhuma razão para nos envergonharmos do que representa a palavra hispanidade, que, diga-se de passagem, agora rima com liberdade. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

* MARIO VARGAS LLOSA É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

Opinião por Mario Vargas Llosa

É prêmio Nobel de Literatura

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