PUBLICIDADE

A impunidade da polícia britânica

Por Timothy Garton Ash
Atualização:

Há dois tipos de países: aqueles onde as pessoas normais e decentes temem os criminosos, mas confiam na polícia, e aqueles onde as pessoas normais e decentes temem tanto os criminosos quanto a polícia. Já passei bastante tempo em países do segundo tipo, que provavelmente ainda constituem a maioria das nações do mundo. Eu cresci na "razoavelmente normal" classe média britânica, acreditando que nosso país seria um exemplo clássico do primeiro tipo de país: o tipo mais feliz. Nos últimos anos, porém, eu e muitos outros cidadãos britânicos começamos a duvidar disso. Agora, duas coisas me chocaram a ponto de me arrancar da complacência residual. Uma delas é o vídeo feito por um cinegrafista amador que mostra o absolutamente pacífico jornaleiro Ian Tomlinson sendo arremessado ao chão por um membro da tropa de choque da polícia metropolitana de Londres no dia da reunião de cúpula do G-20, realizada na cidade. Mesmo para quem não sabe que Tomlinson morreu pouco depois, a violência súbita, gratuita e aparentemente casual do ataque é chocante por si mesma. É como se o policial envolvido pensasse que arremessar transeuntes ao chão fosse a coisa mais normal do mundo. Desafio qualquer um a assistir ao vídeo sem se abalar. A outra é a prisão, por parte dos oficiais do grupo de operações especiais da polícia metropolitana londrina (e mais especificamente, ao que parece, do Comando de Combate ao Terrorismo), do porta-voz para assuntos de imigração do Partido Conservador, Damian Green. A invasiva busca realizada no lar do parlamentar, nos seus documentos pessoais, sua cama, seu gabinete parlamentar e seus computadores, incluindo pesquisas por palavras-chave na sua correspondência eletrônica trocada com pessoas como Shami Chakrabati, da organização ativista Liberdade. Green não teve nenhum envolvimento no vazamento de informações e tudo foi justificado por aquilo que um comitê parlamentar pluripartidário concluiu agora ser essencialmente uma acusação falsa feita pela Casa Civil alertando para uma ameaça à segurança nacional. O leitor poderia pensar: se uma coisa dessas pode acontecer com um dos principais parlamentares da oposição, se uma coisa dessas pode acontecer com um transeunte inocente, então qualquer um pode estar sujeito a isso. Pode acontecer comigo. Provavelmente os membros da confortável classe média têm uma capacidade maior de se imaginar no lugar daqueles que já vivenciaram a brutalidade policial e a intimidação, mas a maioria dos seres humanos não consegue extrapolar para além da própria experiência de vida. E na maior parte do tempo, estamos ocupados demais com outros assuntos na cabeça. Contudo, subitamente, um público mais amplo acordou para o problema. O presidente da Federação Britânica dos Policiais disse que seus colegas se sentem atropelados por uma onda de críticas e "sentimento antipolicial". Estas críticas são feitas não apenas por órgãos da esquerda, mas também pelo Daily Telegraph, pela revista The Economist, pelo The Spectador e pelo Daily Mail - nenhum desses veículos é conhecido pela sua tradição de esquerdismo e denúncia do abuso policial. Alguém poderia dizer que a polícia só tem a si mesma para culpar. Não é exatamente verdade. De fato, os parâmetros operacionais, o treinamento e a cultura interna de unidades, como a tropa de choque e o Comando de Combate ao Terrorismo, sempre merecem ser alvo de preocupação. Até nos países mais democráticos e legalistas existe o risco de os homens e mulheres que fazem parte de tais unidades desenvolverem uma mentalidade isolada, correspondente a uma situação de guerra, e divorciada dos valores e do bom senso presentes na sociedade que os rodeia. No entanto, o partido político que celebrará 12 anos no poder na semana que vem e os funcionários públicos que deveriam trabalhar com imparcialidade em favor da boa governança devem partilhar a culpa. Desde 1997, o Novo Trabalhismo de Tony Blair - e agora de Gordon Brown - esteve envolvido em uma corrida armamentista com os conservadores para mostrar à opinião pública quem é mais duro no combate ao crime. A partir de 2001, foi acrescentada à agenda da "guerra ao terror", levando o partido a optar invariavelmente pela restrição em vez da liberdade. Recentemente, um grupo formado na maioria por estudantes paquistaneses foi detido com imenso estardalhaço e acusado pelo primeiro-ministro de envolvimento em um "complô de grandes proporções". Quando se descobriu que não havia provas suficientes para justificar as acusações, mesmo sob a abrangente redação da nossa legislação antiterrorismo, o chefe de polícia de Manchester disse que eles eram "inocentes",mas ainda assim a maioria dos estudantes foi deportada. Pode-se imaginar a reação do Paquistão. Será que o sacrifício da liberdade deles melhorou nossa segurança? Ou será que, no longo prazo, isso a submeteu a um risco ainda maior? A polícia agiu bem, levando-se em consideração que ela está na linha de frente de ambas as campanhas - contra o crime e contra o terrorismo. Conforme disse Blair, em 2004, "perguntamos à polícia quais eram os poderes que a polícia desejava e os conferimos a ela". Uma linha contínua foi traçada entre os temas da segurança nacional e do bem-estar individual. O alcance cada vez maior da rede de coleta de informações sigilosas, que passou a cobrir também aqueles que não eram suspeitos de crimes e não demonstravam intenções terroristas, passou a ser visto como elemento chave para garantir a segurança. Muitas vezes, em uma cultura burocrática moldada pelos assessores políticos e discursos distorcidos, os funcionários públicos de alto escalão e os oficiais da polícia fracassam em distinguir com clareza entre os legítimos interesses da segurança nacional e os do partido no governo. De que outra maneira seria possível explicar a carta redigida pelo diretor de segurança e espionagem da Casa Civil, Chris Wright, solicitando a abertura de um inquérito policial (em vez de uma investigação da Casa Civil, mais tradicional) a respeito do constrangedor vazamento de informações relacionadas a Damian Green, com a hiperbólica afirmação de que "não restaria dúvida quanto ao considerável estrago já feito na segurança nacional"? Várias coisas precisam acontecer para que o equilíbrio possa ser restabelecido. Para começar, a polícia precisa arrumar a própria casa. Na esteira das investigações já em curso, ela precisa redescobrir a medida proporcional da força empregada no cumprimento da sua própria tarefa, resumida pelo inspetor chefe da polícia, Denis O?Connor, nas palavras que adornam a medalha policial da rainha: "Protejam meu povo". "Meu povo" significa nós, as pessoas que moram na Grã-Bretanha - e não a própria polícia, que tenta defender seus membros ou evitar que o ministro do Interior passe por constrangimentos. Qualquer politização dos servidores públicos e da polícia deve ser rejeitada. A investigação independente das atividades policiais precisa ser reforçada. Nessa crise, a Comissão Independente de Queixas contra Policiais deve reafirmar sua independência. Devem ser abertos processos sempre que as provas justificarem tais medidas. A revista The Economist relata que "nenhum policial jamais foi condenado por homicídio, seja doloso ou culposo, nos casos envolvendo mortes posteriores ao contato policial, apesar de terem sido registradas mais de 400 ocorrências desse tipo nos últimos 10 anos". Isso leva a uma questão constitucional mais ampla: precisamos de uma maior separação entre os poderes na Grã-Bretanha, com um Legislativo eleito democraticamente e um Judiciário independente com poderes mais claros e definidos para controlar o nosso Executivo, que está desproporcionalmente fortalecido. Nos últimos casos, a função de controle foi exercida pela mídia, auxiliada por cidadãos que tiram fotos com suas câmeras digitais. Nesse contexto, a imprensa tem correspondido à alcunha de quarto poder. A colaboração entre cidadãos e mídia independente precisa ser tomada como ponto de partida, em vez de ser sufocada. Vale lembrar que o atual governo quer transformar em crime o ato de tirar fotos de policiais, que poderiam supostamente ser úteis para terroristas. É fácil imaginar o abuso desse poder por parte de um policial em cólera para confiscar a câmera que gravou o ataque contra Ian Tomlinson. Se conseguirmos tudo isso, nós britânicos poderemos novamente acreditar que moramos em um país decente. * Timothy Garton Ash é professor de estudos europeus na Universidade Oxford

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.