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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|A Itália e o Brasil

Será submetida a referendo a reforma, já aprovada no Parlamento, que o premiê italiano considera 'a mãe de todas elas': a conversão do Senado em uma instância de decisão sobre assuntos regionais, deixando as votações sobre as questões nacionais apenas para a Câmara dos Deputados

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Durante décadas, a Itália pareceu um país inviável: instabilidade política, inflação alta, gastos excessivos, desorganização regulatória e institucional, crime organizado, corrupção, sindicatos poderosos defendendo “direitos” insustentáveis, alta carga tributária. 

Dois ventos começaram a afastar essa tempestade perfeita: a Operação Mãos Limpas, que pôs fim à impunidade da corrupção e higienizou as relações entre o público e o privado, e a adesão ao euro, que arrancou o tapete (a lira, com seus inúmeros zeros) que encobria a irresponsabilidade fiscal — num certo sentido, eliminando a impunidade econômica. 

A legalização da união entre homossexuais é uma das bandeiras do partido do premiê italiano, Matteo Renzi Foto: REUTERS/Remo Casilli

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Essa organização do país preparou o terreno para as reformas que vêm sendo conduzidas pelo governo de Matteo Renzi desde fevereiro de 2014. Elas incluíram a modernização da gestão do Executivo e do Judiciário, o equilíbrio das contas públicas, a flexibilização das leis trabalhistas, mudanças na legislação eleitoral e partidária e casamento de homossexuais. 

A Itália já havia feito em 2011 sua reforma da Previdência. A idade mínima para os homens é de 66 anos; para as mulheres, 62, com previsão de igualar a dos homens em 2018. Mesmo assim, o governo negociou com as centrais sindicais uma nova lei que possibilita aposentadoria antecipada, a partir de 63 anos, com corte de 2% ao ano no benefício. 

Ou seja, não houve assunto espinhoso que o governo Renzi não enfrentou, e sobre o qual não se chegou a um consenso. Em seminário na sexta-feira na Fundação FHC, perguntei à ministra das Reformas Constitucionais e Relações com o Parlamento, Maria Elena Boschi, como o governo conseguiu isso. Ela lembrou que o ponto de partida para a criação de um ambiente de consenso foi a reeleição indireta do presidente Giorgio Napolitano, em 2013. Foi a primeira vez que isso aconteceu na Itália, em face do impasse na formação de um novo governo depois das eleições gerais daquele ano. 

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Napolitano foi reconduzido com apoio suprapartidário, e fez um duro discurso de posse, defendendo as reformas. Foi muito aplaudido. Renzi assumiu a chefia do governo no ano seguinte e aproveitou esse ambiente para construir o consenso. Embora seu Partido Democrático seja considerado de esquerda, as reformas contaram com o apoio de quase todos os partidos, incluindo o Forza Italia, de Silvio Berlusconi, e a Lega Nord, ambos de direita, e com exceção importante apenas do Movimento Cinco Estrelas, do humorista Beppe Grillo. Somente no ano passado, a Forza e a Lega retiraram o apoio, mas então o grosso das reformas estava aprovado. 

Forças. Se, num primeiro momento, a liderança de Napolitano foi crucial, em seguida o mesmo aconteceu com a de Renzi. E sua tarefa não terminou. Será submetida a referendo, no dia 4 de dezembro, a reforma, já aprovada no Parlamento, que o primeiro-ministro considera “a mãe de todas elas”: a conversão do Senado em uma instância de decisão sobre assuntos regionais, deixando as votações sobre as questões nacionais apenas para a Câmara dos Deputados. Com isso, o governo pretende destravar o processo legislativo, livra-lo do vai e vem da Câmara para o Senado, que se prolonga por anos. A reforma corta um terço dos parlamentares. Imagine o que é aprovar isso no Parlamento. Renzi ameaça renunciar se perder o referendo. Colocar a carreira política em jogo é a forma mais contundente de um político demonstrar a importância de uma escolha para o seu país.

E aqui aterrissamos no Brasil de Michel Temer. Assim como a Itália de alguns anos atrás, o País está falido dos pontos de vista político, econômico e educacional, entre outros. A Operação Lava Jato começa a higienizar as relações público-privadas, enquanto a Lei de Responsabilidade Fiscal, fortalecida pelo impeachment de Dilma Rousseff, ocupa o lugar do euro como exigência de disciplina orçamentária. Para quem tem algum apreço pela matemática, é óbvio que o Brasil não pode seguir adiante sem o teto dos gastos e sem uma reforma da Previdência. 

Igualmente, quem conhece a realidade internacional sabe que os países com índices de desemprego mais baixos, como os EUA e a Inglaterra, são os que têm as leis trabalhistas mais flexíveis. As centrais sindicais sempre defenderão a proteção dos direitos das pessoas com carteira assinada: são elas que sustentam os sindicatos; é para eles que elas existem. Portanto, um governo não pode esperar a concordância de sindicatos – nem dos partidos para os quais servem de base – para tomar decisões nessas áreas. Se eles concordarem, muito bem; se não, é preciso seguir sem eles, em favor dos cidadãos à margem do emprego formal, e do País em geral, que precisa ser mais produtivo e competitivo. 

Isso se aplica à resistência da indústria contra a abertura comercial, ou dos sindicatos de professores contra reformas na educação. O governo tem de governar para todos, e não para os mais organizados. Tem de ser capaz de explicar para a sociedade que o que importa não é gastar cegamente, mas gerir os recursos escassos com competência e justiça, e que a perpetuação dos direitos previdenciários e trabalhistas é um abraço de afogados. 

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À pergunta sobre por que se decidiu a levar a reforma do Parlamento a referendo, o que torna o seu destino incerto, a ministra explicou que, de fato, o governo contava inicialmente com maioria de dois terços para aprová-la sem o referendo, mas que considerou que uma decisão tão importante não poderia dispensar a consulta popular. E finalizou com o seguinte recado: “Não se pode ter medo de perder na política”. Governar – e, aliás, viver – preocupado com o que se tem a perder não é governar nem viver. É esperar o fim.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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