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'A luta é pelo voto de um terço que rejeita política', diz historiador argentino

Para especialista, morte de Nisman foi catalisador de um descontentamento com o kirchnerismo

Por Rodrigo Cavalheiro
Atualização:

O historiador Luis Alberto Romero dedicou-se a estudar a sociedade, a cultura e a política argentinas no século passado, trabalho que sintetizou no livro Breve História Argentina 1916-2010. De linha conservadora, ele enxerga "virtudes às avessas" no kirchnerismo, a oito meses da eleição presidencial. Após 21 anos sem punição pelo atentado contra a Amia, uma multidão marchou pelo promotor que investigava o caso. É um sinal de que "o copo transbordou"? É mais fácil comover-se pelo magnicídio de Alberto Nisman do que pela complexa questão da impunidade, cujas razões não são claras. Digo com isso que não sei a quem estão protegendo. Quando a transbordar o copo, na Argentina isso nunca ocorre. Por que havia demandas diversas na marcha que deveria ser "apenas" por Nisman?Nisman foi o catalisador de um descontentamento cidadão recente, com motivações variadas. Quando os movimentos não têm forças políticas que os fortaleçam, aparecem de forma difusa. No ato de novembro de 2013, cada um levou um cartazinho com sua prioridade. Isso foi excluído dessa vez, mas não significa pobreza de conteúdo. O fato de o centro do protesto ter sido um ponto ligado ao institucional é uma mudança de prioridades significativa.Ao atacar a marcha como "opositora", o governo pretende manter os que já votaram nele? Desde 2003, a estratégia do governo é confronto, desqualificação e vitimização. Isso blinda a tropa e desarticula opositores. Em geral, isso dá certo. Não há razão para mudar.Outra crítica governista é a de que foi uma marcha de classe média e aposentados, incapaz de alterar uma eleição. Há sentido no argumento? 

Outros disseram que era um ato antissemita e de narcotraficantes. Não vale a pena discutir essas desqualificações. A verdade é que se manifestou uma parte da cidadania. Um terço amplo, digamos. Outro terço, ou pouco menos, sustenta os argumentos do governo. A luta é pelo voto do terço restante, formado por gente que rejeita a política. Acho que o caso Nisman, que culmina com a marcha, mobilizou esse grupo, que em 2011 votou em Cristina e não voltaria a fazê-lo. Há algo que o sucessor de Cristina, mesmo sendo um kirchnerista, não seguirá do modelo atual? Se falamos de combinação de concentração de poder, grande corrupção, péssima gestão e discurso agressivo, não acredito que os postulantes mantenham isso nos mesmo termos. Mas também não vejo tudo mudando completamente. Ainda não podemos saber qual será o ponto entre os dois extremos.Em que medida a estratégia do conflito permanente tem a ver com os êxitos do kirchnerismo?Doze anos foram suficientes para consolidar o modelo que descrevi. Por exemplo, a pressão sobre a Justiça somente agora está mudando. Foi uma tática vitoriosa, mas podemos dizer que, no longo prazo, é insustentável, assim como uma política econômica populista conduz a uma crise. Por que Cristina não conseguiu passar uma nova reeleição? Porque não teve uma vitória avassaladora em 2013 (nas legislativas). Não sei em que momento ela se conformou. No domingo, disse pela primeira vez que não estaria no poder no ano que vem. Perdeu a batalha com o Clarín (com liminares, o grupo evita o desmembramento ordenado pela Lei de Mídia). Perdeu em 2008 a batalha contra os ruralistas. Perdeu a batalha pela "democratização da Justiça". Qualquer outro governo teria abandonado a luta. Eles, não. E isso os faz muito singulares. Em um sentido não valorativo, admiráveis.Qual a relação entre a radicalização de Cristina em 2011 com a morte de Néstor Kirchner, no ano anterior?É total. Néstor tinha outros recursos e outra forma de lidar com a política, mais pragmático e flexível. Conseguia acompanhar a gestão do governo. Cristina não tem essas habilidades, mas tem uma: o discurso. A radicalização começa em sua palavra. Qual o legado desse governo? As imagens serão diversas e mudarão. Será odiado e admirado sucessivamente.

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