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A luta sem percalços de Merkel

Mesmo intelectuais que criticam a chanceler alemã destacam seu espantoso poder político; na prática, ela conseguiu se livrar de uma oposição

Atualização:

Pouco mais de uma semana após a vitória de Angela Merkel nas eleições parlamentares alemãs, o filósofo Jürgen Habermas recebeu o título de cidadão honorário de Kassel - e foi aplaudido por sua crítica à política da chanceler. A análise de Habermas é típica de um sentimento bastante difundido entre os intelectuais do país. Ele denuncia a falta de um "núcleo normativo" nas decisões de Merkel, ou seja, de uma orientação e de uma trajetória norteadoras, o que sugere que o inegável sucesso de Merkel se deva à sua capacidade de canalizar expectativas das maiorias em constante mudança.Como seu mentor e predecessor democrata-cristão, Helmut Kohl, Merkel conseguiu transformar essa desaprovação das elites culturais em mais um elemento básico de seu firme controle do poder. Pois, por uma "lógica social do coração", todo indivíduo de classe média que se sinta olhado de cima pela intelligentsia tende a dirigir suas simpatias para os políticos desprezados por acadêmicos, escritores e artistas.Apesar disso, Merkel agora enfrenta um problema com o qual nunca se defrontou. Como muitos comentaristas políticos disseram nas duas semanas que se seguiram às eleições alemãs, sua vitória, num sentido paradoxal, poderá revelar-se precária pelo fato de ter sido esmagadora. Tanto o Partido Social-Democrata quanto o Partido Verde, os dois óbvios parceiros num governo de coalizão que terá de manter o país à tona (Merkel chegou surpreendentemente perto, mas não conseguiu a maioria parlamentar absoluta) hesitaram em começar as negociações com ela; e essa hesitação parece mais do que apenas estratégica.Diferentemente das elites culturais, os parceiros políticos de Merkel, em vez de subestimá-la, temem a força política da chanceler a ponto de evitar sua proximidade. Existem sólidos motivos para essa apreensão. Tendo obtido 14% em 2007 e se revelado um parceiro confiável (embora cada vez mais invisível) na coalizão de Merkel, dessa vez os liberais alemães não alcançaram 5%, o que os exclui da representação parlamentar. Não foi muito melhor o resultado dos Verdes, que permanecerão na oposição e provavelmente contam com uma base popular mais sólida na Alemanha que em qualquer outro país. Nos últimos quatro anos, Merkel abraçou algumas das principais posições ecológicas, reduzindo os votos dos Verdes a um patamar que tornou inatingível sua meta de formar um governo com o Partido Social-Democrata. Até os social-democratas, tradicionalmente os únicos verdadeiros adversários de Merkel, parecem sofrer destino semelhante. Em comparação à política dos EUA e dos governos mais de esquerda da América Latina, os valores social-democráticos hoje dominam a política nos principais países da União Europeia (e o governo de Merkel não é nenhuma exceção), o que torna cada vez mais difícil para os partidos daquela tradição manter uma identidade compreensível - ou mesmo crescer.Vendo a questão por esse ângulo, conclui-se que os únicos verdadeiros grupos de oposição na Alemanha são o novo Partido Alternativa para a Alemanha, antieuropeu, e a legenda herdeira do socialismo de Estado da Alemanha Oriental. De certo modo, os socialistas, que receberam votação um pouco maior que os Verdes, são a única alternativa com base ideológica à Alemanha de Merkel - mas qualquer governo poderá facilmente isolá-los, porque sua base de poder continua reduzida quase exclusivamente aos Estados federais da Alemanha Oriental.As consequências dessa situação são surpreendentes e, à primeira vista, até mesmo contraintuitivas. Pois, se a força política de Merkel se revelou letal para seus ex-aliados, agora se torna mortalmente ameaçadora para todos os possíveis aliados futuros. Manter certa distância dela é uma questão de sobrevivência. Mas os conflitos de seus concorrentes ameaçam a própria sobrevivência política de Merkel. Segundo rumores, tanto os social-democratas quanto os Verdes, em vez de participar de uma coalizão com ela, planejam oferecer a Merkel uma situação de tolerância parlamentar, o que é considerado pelos eleitores alemães um pesadelo político, pois acarretará negociações permanentes. A fim de evitar essa situação, o presidente da república, provavelmente, convocará novas eleições - o que dará à chanceler um novo e melhor impulso para chegar à maioria parlamentar absoluta.Embora tenha lutado pela sobrevivência, Merkel continua a dominar a política alemã. Qual é o segredo desse sucesso tão improvável? Acima de tudo, a maioria dos alemães associa a sólida situação econômica e social do país à eficiência sem glamour de Merkel. Eles também vinculam essa situação à sua insistência na responsabilidade fiscal, que tornou Merkel alvo de ataques em muitas nações financeiramente mais fracas na Europa. Mesmo o papel modesto que ela prefere desempenhar na política externa, surpreendentemente, às vezes, para um país do vigor da Alemanha, encontra aprovação numa sociedade que ainda precisa superar plenamente o trauma de ter começado - e perdido - duas guerras mundiais. E o mesmo vale para sua flagrante falta de carisma, que só pode inspirar confiança numa nação que, em certo momento, caiu presa da retórica de Hitler.As únicas exceções ao estilo sóbrio de Merkel são, enquanto isso, as famosas visitas-surpresa ao vestiário da seleção nacional de futebol. Evidentemente, elas continuam insuspeitas em quase todos os sentidos possíveis. Ao mesmo tempo, os intelectuais que a criticam destacam o espantoso poder político da chanceler como o despontar de uma era pós-política. E podem ter um argumento. Pois, embora Merkel não tenha filhos, a maioria dos cidadãos alemães parece gostar de ser governada por uma mulher a quem chama Mutti (mamãe) - sem ternura excessiva. E por que não?,

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